quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A destreza de ser canhoto

O canhoto é aquela pessoa desajeitada que lê e escreve contra a corrente. O canhoto suja a mão com a tinta fresca das linhas que desenha, borratando sistematicamente o papel, como se carimbasse o registo com o seu tom de imperfeição. O canhoto não se converte. O canhoto não é suposto. É o contrário. É ao contrário. O canhoto começa a dançar com o pé errado e tem tendência a rematar do lado errado. O canhoto bate com o cotovelo no destro se ficar do lado direito numa secretária para dois. Insistentemente na vida à procura do lado certo. O canhoto é a parte da caderneta que nem serve para reclamar o prémio, zelando apenas para a identificação do vencedor. É isso mesmo um canhoto, é aquele que tem alguma utilidade mas não reside no grupo principal. E sobretudo porque não reside no grupo principal. A sofisticação do génio sem lugar.  Sem jeito. Que se apresenta como portador de um defeito que não é mais do que o feitio raçudo de ter um cérebro tão direito num mundo predominantemente esquerdo. O canhoto é uma troca de hemisférios num mundo que não troca de critérios quanto ao sentido da circulação.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Nº. 100

Tinha pressa e havia uma porta que dizia: puxe. Eu empurrei.
Com certas portas repete-se este problema - caminhamos com a certeza de que estamos do lado certo... e quando chega a altura de entrar percebemos que trazemos connosco o movimento errado. Subitamente o trajecto parece todo um tremendo equívoco, o fluxo da passagem arrasta-nos no sentido inverso e nessa altura talvez sejamos capazes de compreender que a porta tem sempre qualquer coisa escrita para quem tiver disponibilidade de ler.
Tendo pressa não se entende que a vida não se empurra. Puxa-se.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Don't let me down

A responsabilidade e a consciência. Talvez sejam coisas em falta no governo dessa outra coisa mais ou menos turva que se chama res publica. A decisão sobre aquilo que é comum, ultimamente tão debatida e celebrada, leva-me a pensar que o ideário do povo igualitário e respondente começa na esfera pessoal e irrepetível de cada um. Na capacidade de viver rigorosamente o fio da navalha entre a glória e a decepção. Ter o lustro da seriedade que tempera de medo os avanços e de amargura as desilusões. Que faz imperar as paixões em cada gesto e o terror do abismo em cada intenção. Talvez seja basicamente nisto que concerne a impossibilidade de ser pleno. Tudo mais é interdito. Possa residir aqui a obrigatoriedade de que cada vertigem seja saborosa. E o compromisso individual o mais implacável e indispensável padrão.