terça-feira, 31 de maio de 2011

Tempo de antena

Tempo de antena. Instantes que duram séculos. Como todos aqueles que nos impõem em regime ditatorial. Uma sequência violenta de mau gosto mal intencionado. Esquema estéril para exortar uma suposta capacidade de reflexão. Estratégia inútil para agendar a noção vaga de uma tal consciência cívica que não se aprende nem se aplica através da televisão.
Tempo de antena. Talvez cada um se devesse reservar esse direito. Seleccionar um punhado de minutos diários para infligir-se a si próprio de uma mensagem qualquer. Recordar-se do vago compromisso que cada qual deve assumir perante uma ideia mais ou menos liberta de identidade. Um esquema fértil de utilidade estratégica para quem conserve a aspiração de ser capaz de qualquer coisa.
Tempo de antena. Instantes que duram séculos. Resume-se a isto a versão quitada de uma ideologia. Os tempos em que se poupa na possibilidade de pensar. Retrato de uma bandeira vazia num comício sem púlpito governado por telecomando.  A austeridade do ridículo num momento em que as vidas estão sem orçamento para militar.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Here I go again

Na terça-feira fiz anos. Há uns anos não imaginaria ter tanta alegria no meu aniversário. E, sobretudo, tanto orgulho dos meus aniversários. Mas aqui vou eu outra vez. Há uns anos atrás não imaginaria que pudesse chover no meu aniversário. E, sobretudo, que trovejasse no meu aniversário. E que eu fosse tão feliz na mesma, apesar disso tudo. Aqui vou eu outra vez. Há uns anos atrás não imaginaria que não sobrasse tempo para vir escrever disparates no blog. Escrevê-los no próprio dia do meu aniversário. E, sobretudo, não fazia ideia de receber tantos abraços de amigos, tantos beijos de amigos, tanta gente boa para roubar o meu tempo. E aqui vou eu outra vez. Não imaginaria que pudesse querer comer um bolo de aniversário sem açúcar. E que fosse sujeitar os meus convidados a roer entrecosto numa tasca. E que fosse saber-me tão bem. Mas aqui vou eu outra vez. Com pernas para correr, pernas para dançar, com quilómetros para fazer, milhas por andar. Com novas malas por encher, mais caixas para esvaziar. Aqui vou eu outra vez. Rumo aos anos que não imaginaria nem que tivesse vivido muitos mais anos. Rumo aos dias que ganharão um lugar na ternura dos meus aniversários. Aqui vou eu. Outra vez, como dizem os Whitesnake, na solitária rua dos sonhos.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Entre mis recuerdos

Lembro-me do quintal, das tardes de chuva e das tardes de sol. Lembro-me das árvores, durante uns tempos abastadas, noutras alturas despidas. Entre as duas casas, sempre a passadeira de cimento irregular, umas vezes percorrida à pressa, outras vezes devagar. E, na fachada da minha casa, acima da soleira da porta, um candeeiro. Uma lâmpada de luz metida numa campânula de vidro mal enroscada onde alguns insectos repousam. A luz fica sempre acesa durante a noite, não vá alguém precisar.
Já houve tempos quentes, outros tempos mais frios. Já houve dias que seguiram noite adentro, já houve noites que terminaram de manhã. Umas vezes com o mundo abastado, outras vezes despido. Entre mim e a minha casa, sempre uma passadeira de cimento irregular que percorro com a religiosidade de um rito qualquer. Na fachada, sobre a soleira da porta, o candeeiro. A luz acesa da minha campânula, a lâmpada da minha existência mal enroscada. Vou sempre precisar.

domingo, 1 de maio de 2011

Something simple

Não oferecemos algo simples. Procuramos aquela prenda para aquela pessoa. Pensamos no jeito que a distingue, nos objectos que a definem, nos pequenos prazeres que a fazem feliz. Reflectimos sobre o que somos para ela e sobre o que ela é para nós. Hesitamos entre preencher uma necessidade ou investir apenas num mimo. Hesitamos entre um toque de humor ou um simbolismo profundo. Ou procuramos apenas uma coisa que diga que não nos esquecemos. Que estamos satisfeitos por tê-la aqui. Que cortámos uma fatia do nosso tempo para lhe dedicar. Caminhamos entre as lojas e entre as nossas recordações, mexemos em coisas, rejeitamos coisas. Evitamos a preguiça de pegar numa coisa qualquer. Continuamos a procurar. Falamos com quem nos possa ajudar a encontrar aquela coisa para aquela pessoa. Procuramos a coisa perdida dessa pessoa como se fosse a nossa missão de lha entregar. Pensamos nela, tão dentro da nossa cabeça e do nosso coração. Aguardamos que alguém no mundo tenha feito essa coisa à sua medida para que lha possamos entregar. A coisa aparece. Embrulhada num sítio qualquer onde só nós a poderíamos encontrar. E finalmente imaginamos que esta seria aquela coisa perfeita para aquela pessoa. A coisa vai embrulhada nisso tudo. No estado do tempo nesse dia, nos nossos afectos, nas voltas que demos à procura, na nossa insistência para a encontrar. A coisa leva as nossas impressões digitais, marcadas no momento em que a tirámos da prateleira onde nos esperava. Leva a nossa ansiedade em descobrir, a nossa vontade de estar presente, o nosso desejo de agradar. Guardamos a prenda connosco e também guardamos aquele alívio de missão cumprida. E chegamos a um sítio com aquele embrulho, imagem constrangida de quem se quer dar. Nós e o último medo de não ter escolhido bem, a espera pela expressão daquele rosto. Estendemos a mão. Oferecemos. Ouvimos o rasgar do embrulho e uma palavra de agradecimento embrulhada num sorriso. Um obrigada que é tão inferior à dimensão daquele gesto, tão inferior à dimensão daquela pessoa. Daquele momento em que estivemos lá. Não, não oferecemos algo simples.
Mãe, nenhuma outra pessoa poderia ter ensinado melhor o significado de uma oferta singular. Aqui vou gerindo o meu presente, tentando oferecer sempre a cada um aquilo que melhor lhe encaixa. Nenhuma outra prenda senão esta teria sido suficiente para ti. Eu a subir estas escadas contigo ao pé de mim. Afinal de contas, talvez baste mesmo uma coisa simples. Continuarmos aqui.