terça-feira, 24 de agosto de 2010

La vie en rose

Hoje preparei a minha mala de viagem, palmilhei quilómetros de estrada e partilhei bancos de transportes públicos. Mudei de ares e de rotina e engalanei o meu espírito para o momento em que poderei enfim esticar-me ao Sol e cumprimentar o Mar.
O primeiro dia de férias é a melhor altura para usufruir desta constatação, assinando um compromisso veemente de não contar jamais os minutos, de não registar segundos perdidos, reiterando votos sinceros de espremer até ao último sumo cada um de todos os dias. É também o momento certo para fazer balanços e concluir preferencialmente que não há férias melhores do que as férias merecidas.
O meu ano numa palavra: confiança. O afago que significa o alcance de todas as concretizações sob o julgo da dedicação incessante, sob o condão da inspiração e da sorte, sob o signo do apoio do reforço e do reconhecimento de quem importa considerar. Ainda o suporte de vida deste mundo cor-de-rosa onde posso  tratar os regozijos e as recordações, os tons de cinzento e as matizes da imperfeição bem como a catarse dos dias de má memória... tendo sempre quem secreta e silenciosamente os visite com esse quieto mas importante encorajamento.
Partilho aqui o elogio ao que representa realmente estar disponível para usufruir do direito de aprender e de viver como toda a gente. E partilho também aqui o elogio ao que representa realmente estar disponível para corresponder ao dever de recriar e de viver como ninguém.
Hoje preparei a minha mala de viagem e vou saborear das raízes amargas os frutos doces. E é com isto tudo e mais alguma coisa em mente, ou mesmo com nada em mente, que vou finalmente mergulhar o pé na areia.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Neutron Star Collision

O caminho é esse trilho enlameado onde não devemos temer a raiva de nadar. O caminho é essa lagoa alvorada onde nos cruzamos e nos ligamos mas que nunca nos vai chegar. O caminho é esse lugar mais do que uma estrada solitária onde escolhemos entre adormecer ou acordar. É esse sorvo original que não conhece o pudor e que procura num campo esquecido a ternura de uma miragem. É essa capacidade de inquietude e de anarquia e de libertinagem a que alguns chamam cobardia e a que outros chamam coragem.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A Biblioteca Municipal

Recordo-me de subir as escadinhas entre as rudes paredes de pedra no calor do Verão. E sempre que o calor do Verão me afaga com o seu regresso mais eu lamento não poder regressar ao lugar das tábuas de madeira tingidas de onde o mundo inteiro de frivolidades se apartava para que, como num refúgio secreto, pudéssemos marcar um encontro sincero com os livros.
Recordo-me do cartão de identificação da biblioteca que era colorido assim como as folhas de requisição. Eram do mais terno cor-de-rosa, azul ou verde que pela cegueira da memória já não sei precisar. Mas precisos eram os traços escritos à mão para os preencher, com a honestidade e espontaneidade do manuscrito que uma tal modernidade se propôs anular. Era um tempo em que seria anedótico conjecturar a ideia de um computador que pudesse conhecer melhor o código das prateleiras alfabetizadas, tão impecavelmente limpas e organizadas, do que o bibliotecário, só ele, podia decifrar.
Recordo-me de ir buscar os livros infantis à esquerda, na segunda prateleira a contar do chão. Disposição lógica para a acessibilidade das crianças, muito embora ainda hoje saibamos reconhecer que não é a altura das prateleiras o que nos impede de chegar aos livros. Mais tarde os locais de procura foram-se estendendo para outras estantes, acompanhando a tímida amplificação dos interesses e seguindo as criteriosas sugestões do bibliotecário. Um tempo em que um bibliotecário não só era um poço de carisma como era alguém que efectivamente lia livros.
Recordo-me de descobrir o cheiro das páginas por folhear, o odor das palavras lidas que é tão diferente e tão mais generoso do que ar incógnito das linhas por ler. O primeiro toque quase orgástico das folhas de papel sempre virgens e impávidas, aguardando silenciosas quem as venha despentear. O primeiro diálogo mudo com um livro como um primeiro amor, como a descoberta de um corpo nu com rimas e cantos por desvendar.
Recordo-me da pureza sacrificial de transportar responsavelmente o tesouro de um livro no ritual de caminhar para a saudosa Biblioteca Municipal e lembro esse tempo que já não mora senão na brisa que corre onde habitavam as paredes demolidas. O lugar onde parávamos sem que o tempo desse conta das horas é onde hoje estacionam de forma passageira e desconcertada os automóveis.
Recordo-me dos laços que fazemos e dos quais por vezes tão levianamente nos desfazemos. E da quantidade de lugares que amámos desesperadamente e que depois deixámos ruir. E essa brisa sinto-a agora, ainda intocada, encantadora, guardada no interior de um livro.

terça-feira, 3 de agosto de 2010