segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

better days

Para ter dias melhores, creio eu, é necessário desejar realmente, todos os dias, ser melhor. É necessário um compromisso verdadeiro para com a verdade do que se deseja. É necessário registar os desejos e repeti-los e desejá-los, realmente, repetidamente, todos os dias. É preciso querer, é preciso fazer. E é preciso compreender que a estrada dos desejos se torna mais desejável à medida que a percorramos, desejavelmente, um dia de cada vez.
Eu cá, desejo ser profundamente honesta com o que sou, transportando sempre comigo o lugar de onde vim e aquele aonde quero chegar. Desejo dar-me mais, comigo e com os outros. Dar-me, a mim e aos outros, melhor. Desejo ir a tempo de sonhar todos os sonhos que posso concretizar. Desejo que os dias se agigantem para acolher tantos desafios. Desejo que as noites se estendam para receber a paz de ter feito o que houver a ser feito. Desejo que as madrugadas se multipliquem para que nelas se renove a vontade interminável de aprender. Desejo que haja música, que haja dança, que haja braços para abraçar. Que haja caminhadas, que haja chão para percorrer, que haja pernas para andar. Desejo que haja prazer, que haja brio e que haja sorrisos. E desejo tudo isto de pálpebras cerradas, com muita força, sem saber o que lá vem, aceitando o que vier por bem, enquanto preparo o meu espírito para saltar a pés juntos, de braços abertos, para o que o novo ano desejar.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

alma de bandoneón

A sensação do viajante que regressa a casa. Os horários desgastados, as rotinas remexidas, os sonos trocados. A plenitude inusitada de ter a alma desmembrada, partida, repartida por mais do que uma história, por mais do que uma terra, plantada em mais do que um lugar. E a tortura do sentimento de ausência de todas elas e de cada uma delas, em simultâneo, miscigenada na agonia das saudades de si próprio, do tempo em que todos estes lugares eram desconhecidos e em que a vida era uma única propriedade entre cercas limitadas. O gesto de desfazer a mala no sentido melancólico de desconstruir a viagem, remexendo e arrumando os seus vestígios, distribuindo os seus resíduos, as suas provas. Lado a lado na mala, os presentes embrulhados por oferecer, os objetos deslocados que ainda cheiram a outra casa, que ainda respiram outro ar, e a roupa amarrotada e por lavar, indecisa entre guardar o pó das memórias e aceitar a fatalidade de voltar. Tudo isto misturado numa mesma e caótica mala, entalada à pressa nos dias em que não havia vida que sobrasse para discorrer sobre arrumações, em que não havia tempo para rotinas menores, em que não havia espaço para nada que não fosse desbravado e saboreado sem regras nem compartimentos nem engomagem. Tudo isto misturado com o tempo que agora escasseia, numa altura em que os relógios voltaram a funcionar e a exigir um plano, um cumprimento e uma nova espécie de adequação. Nada voltará ao lugar e nada estará completamente arrumado quando, no regresso, o viajante for outro e a casa for outra, numa vida desarrumada que tirou tudo do lugar. Colapso de energia e de cansaço, sem vagar para recorrer à cartilha das malas desfeitas. Terreno antigo onde agora tudo é novo, onde tudo o que era outrora se ganhou e se perdeu. Casa desconhecida, viajante desconhecido, mala perdida entre o desejo inquieto de voltar a partir e a utopia nostálgica de não ter nunca regressado.

domingo, 23 de dezembro de 2012

the river


Cheiro-te, enquanto passeias para além das soleiras de outras portas, que não sabia entreabertas. Ouço-te, enquanto revisitas recantos que julguei interditos. Vejo-te, refletido nas peugadas de um novo caminho, que agora dá por si a identificar-te, a reconhecer-te, a acenar-te. Assisto-te, enquanto escorres docemente pelas paredes estreitas dos meus receios, pelos soalhos ruidosos dos meus sonhos, estendendo-te pelos terraços abertos da minha ambição. E dou por mim a querer, secretamente, que habites esta casa, que inundes tudo, e que encontres a clareira recortada onde a doçura se aninha. Vem de lá a vontade de tocar-te, de respirar-te, de embriagar-te. De ser de ti, nítida, nunca dantes como hoje e nunca tanto de ninguém. O desejo de viver-te, enquanto a vida for nossa, neste terreno revolvido, até onde queiramos semeá-lo e alagá-lo de uma nova amplitude. Sorrir-te, sempre que o humor, cúmplice, vier despir os pudores. Descobrir-te, sempre que me quiseres descobridora de ti. Abrigar-te, sempre que o meu colo for lugar do teu refúgio. Ter-te, mesmo que te não saibas já meu. Mesmo assim. Hoje mais do que ontem e como nunca dantes de ninguém.