quarta-feira, 26 de agosto de 2009

In(Dependências)

E regresso à minha secretária arrumada com a vida ainda por arrumar. Antes assim.
Da máquina melindrosa do dia-a-dia mecânico e cinzento não sobrou nada. Há até algum desconforto em ter esquecido coisas básicas que costumam ser sempre lembradas na dinâmica de todas as anteriores manhãs.
Compreendo então que, apesar de continuamente nos empurrarem para esse motor rotineiro, em que o corpo faz uso de substâncias, coisas, hábitos, relações, vícios, dogmas e esquemas complexos de afectos que aparentemente nos suportam, o espírito aproveita deliberamente qualquer rasgo de mudança para se desfazer de tudo o que o desfaz genuinamente.
Esquecer a trama de deveres e obrigações, rebelando-se por uma nova causa.
Faço de conta que vou trabalhar apenas hoje, que amanhã logo se vê... - assim se educa a mente para um novo ciclo de desiducação.
Como os hábitos impostos são os mais fáceis de perder...! Como se os vícios voluntários fossem a rebeldia maior de se enclausurar a si próprio...
Sentada na cadeira, as costas começam a recordar lentamente o que as amolenta...
A rotina orquestrada parece agora um jogo longínquo, sem o qual tudo funciona igualmente bem. Estranhamente bem.
E a mensagem conta simetricamente para a ruptura amigável ou litigiosa...
Horrível entender como a dinâmica dos hábitos é volátil, sobrevivendo a todo o tipo de ausências com a naturalidade de quem prossegue igual, para o bem e para o mal.
Como continuamos a andar ainda que nos falte um bocado... faz pensar que talvez esses bocados de nós de que julgamos ser donos não sejam nunca mais do que apêndices dispensáveis de que podemos sempre prescindir.
Por tudo isto me convenço de que as melhores ferramentas da vida são sempre aquelas que nos destituem dos reinos de que não somos senhores, despojando-nos de falsas próteses, lembrando continuamente a constituição original do tronco solitário e singular.
Antes isso do que o sedimentar de impérios circundantes, tronos alheios sem os quais afinal, em caso de derrocada, passamos tão bem.
E inicio a labuta de mais um dia, certa de que não perderei a frescura necessária para resvalar para um outro cenário, assim que o tempo e a memória me facultem os instrumentos necessários para deixar ir os hábitos de hoje e abrir a porta aos sonhos de amanhã.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

São Coisas

Regresso ao cenário das férias da minha infância e agora já não há quem decida por mim aonde ir, embora eu me obrigue, ainda assim, a revisitar os sítios onde passava pela mão e que agora, pelo próprio pé, devo cumprimentar como manda a educação.
Já não sinto o nó na garganta de estar longe e presa, noto agora o aperto de estar de férias e ir para tão perto, sendo livre.
O restaurante dos melhores bifes é agora um bar para putos quezilentos. E até o cone de bolacha daquela maravilhosa gelataria tem um sabor diferente. Um aroma a canela. Os tempos passam, de facto. Tudo muda. Mas por que raio se coloca um aroma a canela num cone de bolacha que sempre abraçou as melhores bolas de gelado da cidade, isso não entendo. Não admito que coloquem canela ou outros sabores nas memórias da minha infância.
As ruas transformam-se em passarelas movimentadas de modelos mais ou menos amadores, de predadores, de presas, de famílias felizes, de pedaços de famílias, enfim, de visitantes bronzeados em geral. Os cheiros dos perfumes que só temos tempo de saber usar quando estamos livres de tempo e que só sabemos cheirar quando esse tempo nos liberta. O aroma do livre arbítrio a vaguear.
Por que não nos deitamos cedo?
Estou certa de que mais vezes me obrigarei a dissertar sobre a resposta a esta pergunta. Ainda que coexistindo com a realidade descartável em que reinará brevemente a trilogia "beber uma, fumar uma, mandar uma", tenho a teimosia de achar por bem descodificar os meandros da equação de que resulta inevitavelmente o facto de ser sempre cedo demais para terminar o dia de hoje e tarde demais para começar fresquinha o dia de amanhã.
O mistério que envolve as pessoas com a madrugada silenciosa onde há sempre algo mais a partilhar, a viver, onde há sempre algo mais para acabar, entre um último chá quente para beber.
Tenho vindo a contar as horas a fim de entender o limite do tempo do dia que possa realmente sorver, entre as ausências de limites que envolvem as mudanças dos tempos, cujas horas nesta altura já não posso conter.
Não sei se isto é uma adolescência tardia ou uma velhice precoce... mas assim este rumo aparentemente despropositado possa enfim ter a cadência perfeita.

sábado, 15 de agosto de 2009

Feitio

Não é defeito, é feitio, é maneira de ser.
É imperfeito, sim, nada está feito, está tudo por fazer.
Procurar um feito entre material contrafeito à espera de poder novos feitos erguer.
Mas no caminho sinuoso desse Senhor poderoso chamado Perfeito, todo o achado, aberto ou fechado, parece defeituoso...
E o ar que corre fica rarefeito entre um e outro sopro que provoca o tal efeito.
Entre um e outro sopro, feitos um com o outro, tudo parece desfeito...
Para quebrar esse feitiço vou fazer um esquiço que desfaça o enguiço.
Para todos os efeitos, tamanha empreitada tem de exigir isso!
Sair do banho-maria e fazer um percurso apetecível mais ou menos bem feito, com um desenho visível, um quadro minucioso que seja tão saboroso como um doce enfeitado em confeitaria.
Feito do efeito mais ou menos perfeito que vence o desafio, num lugar de afeições onde todo o defeito é apenas feitio.

domingo, 2 de agosto de 2009

Bilhetes

E guardo o bilhete com o teu nome e o teu número de telefone no volume amassado de papéis que se amontoam no compartimento da carteira especialmente destinado às coisas inúteis.
Lá fica entre bilhetes de ida ou de volta, cartões de restaurantes agradáveis e papéis de movimentos desagradáveis como levantamentos e outras contas por rasgar.
Lá fica entre bilhetes tirados em bilheteiras e outros papéis que já não esperam lotaria, que já não se podem remeter a uma tômbola, aguardando qualquer prémio a sortear.
Lá fica entre a tralha que já serviu para alguma coisa, que é de toda a forma testemunha de qualquer coisa, mas que já não tem serventia a assinalar.
A aguardar que um outro bilhete calado, casual e descomprometido possa desarrumar a carteira e fazê-la esvaziar-se de toda a tralha inútil, em que no volume amassado de papéis que se amontoam o teu bilhete não terá qualquer importância.
Esse outro bilhete não poderá ser adquirido em nenhuma bilheteira e a sua sorte não carecerá de qualquer tômbola ou sorteio.
Mas será destinado a outro fim que não o das coisas inúteis, permanecendo enquanto a vida se amontoa de uma nova papelada por rasgar.
E guardo o bilhete com o teu nome e o teu número de telefone à espera de já não precisar.