sábado, 26 de setembro de 2009

Não, obrigada.

Nisto de viver e aprender parece haver também uma cultura, esta não emergente e nem sequer contemporânea, mas de uma persistência quase perversa e transversal aos tempos.
- É preciso ser duro e ser esperto.
Adjectivos pouco eloquentes de uma filosofia, também ela, pouco inteligente.
A premissa da acção, da imposição, da sobreposição, a astúcia rasa de um qualquer "salve-se quem puder" que devia ser tão inútil em sociedade, para os cretinos, como para os ratos em alto-mar.
A insensibilidade ao trauma sob a forma de um qualquer penso rápido com espinhos e a ditadura do sofrimento - próprio e, sobretudo, alheio - como um éter de anestesia, um meio para um qualquer fim já de si vazio de todos os conteúdos e anti todos os fundamentos de civilidade.
Os atalhos criados como uma rede secundária aos caminhos da educação, da boa formação, da elegância e da cordialidade serão vias rápidas para todos os becos em que otários e arrogantes se encontram sem saída.
Se o labirinto da civilização e da sociabilidade se funde no eixo em que, sem ofensa para os bichinhos, os humanos se transformam em animais...
Não, obrigada.

sábado, 19 de setembro de 2009

Intelectualismos

Pesam, inevitavelmente, cada vez mais, os escalões hierárquicos de intelectos para os quais as referências culturais são o barómetro mais tentador.
- Conheces esta banda? Este livro? Este realizador?
Os chamados "obrigatórios" são usados como factor crítico de integração neste ou noutro patamar dos meandros sociais.
Diria eu, a cultura não deve servir de critério de seriação e nem, tão pouco, imiscuir os grupos da corrente open mind de serem tão ou mais ecléticos e verdadeiramente modestos do que toda a gente.
Entendo então que o paradigma cultural pode ser, neste ponto, e infelizmente, uma questão tão mais embrenhada de motivações grupais e influências recíprocas de referências comuns do que propriamente o interesse genuíno fruto do percurso individual de cada um.
Realizo, desta forma, com alguma decepção, que a maioria dos grupos de intelectuais, pseudo e afins, evocam cinema, literatura e discografia característica da mesma forma que um adolescente aficionado debita mecância e obedientemente a marca de jeans, ténis e penteado da sua integração e identificação geracional.
Como um bando de criativos de óculos de massa pode esperar um bolo diferente com os mesmos ingredientes... - que é, afinal, uma coisa tão pouco original.
Tão perto e tão longe dos grupos de senhoras maduras fãs de um ou outro cantor popularucho, defensoras do cubo mágico e acérrimas embaixadoras do tupperware.
Tão perto e tão longe do grupo de senhores maduros doutorados em sueca, especialistas do aftershave que arde e da previsão futebolística de bancada.
Pelos becos da teia deambulam de rótulo "sem rótulo" os outsiders, eternos ignorantes sem fundamento nem contexto, impossíveis de engavetar, imprudentes como um candidato independente às eleições que tem apenas duas opções - ser o esquecido dos protegidos ou o paraíso dos indecisos.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Admitida

Fecho o envelope dos papéis impressos e cheirar a novo e com eles abro a porta para o regresso dos meus incríveis. O estojo das canetas, o cabedal da pasta, os livros e os cadernos, o lápis afiado, o olho desafiado a coisas por saber.
Lembro-me daquele senhor no café. Sentado na mesa à direita. O médico que já não era médico, o doutor que ainda estudava como caloiro, eterno conselheiro gratuito entre as horas de palavras copiadas em cópias sempre novas de conhecer.
Até ao último dia entre os diagnósticos a todo o instante válidos em si mesmos, em mais ninguém necessariamente. Como o amor não depende das coisas de quem é amado, mas de quem ama, assim o saber não depende do texto ou do professorado, mas da vontade de aprender.
Os bancos de madeira, o ranger das tábuas por encerar, sentar-se perante o quadro imenso de universos por polir... Essa condição de aprendiz que está acima das tribos, das ciências, das modas, das gerações, das rupturas, dos tempos.
Conhecer, e sobretudo, fazê-lo independentemente, é a maior empresa a que é possível admitir-se.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Fatalidades

- Deixa lá, é o que tem de ser.
O que tem de ser resume-se então à forma mais ou menos mística de explicar a razão pela qual o universo não nos obedeceu. Há, assim, uma entidade supra-natural especialmente teimosa que surge de forma a manifestar o seu poder. Para justificar e suavizar a contrariedade, subtilmente expelimos um amargo de boca embrulhado com esse nome "o que tem de ser".
O que tem de ser é, por isso, para todos os efeitos, o gajo que manda nisto tudo. O gajo que cumpre a sua vontade mesmo que tudo façamos para fazer a nossa vontade prevalecer. O gajo que se satisfaz a si próprio em nome de nos fazer aprender qualquer coisa, ainda que já nos julguemos sabedores, ainda que nos escusemos do que tem a ensinar.
Agora entendo a amplitude da pré-determinação - mesmo que não se faça nada ou que não se deseje que algo ou alguém seja assim, ele pode sempre ser o que tem de ser. Agora entendo por que esperam todos os que nada fazem, os que se alienam constantemente de buscar seja o que for - esperam pacientemente pela desresponsabilização que lhes confere o Sr. O que tem de ser.
Mas cada um também tem de ser.
E como se não bastassem as condições climatéricas, a genética, os caprichos alheios e outras determinantes mais, ainda temos de fazer face aos presságios, às coincidências, ao destino. Ao que tem de ser.
Entendo, em todo o caso, que por via do acaso, cada caso é um caso, e é possível que todos possamos ter ser tudo o que temos.
Recordando ainda que as determinações e inevitabilidades em geral envolvem também as maravilhosas e estimulantes surpresas com que nos brinda pontualmente o intrigante e afamado Senhor em questão.
Sendo que, para que não restem dúvidas, seja claro que o fado não nos reduz o livre arbítrio, apenas se impõe como um gajo teimoso, lembrando que este não é o único factor em jogo.
Havendo portanto um rasgo no qual ensinar e aprender, mandar e obedecer, possam ser uma dança de forças em que cada um faça o que tem de fazer.
Rumo a esse sujeito com quem temos encontro marcado, perto e a preceito.
No lugar desenhado pelas nossas cores e talvez pintado pelas nossas dores e no fim assinado pelo que tem de ser.