quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Sementes dos Tempos

Faz agora um ano que cortou em abundância os já mudos cabelos longos. Haveria de ser indiferente ou não mais um corte, estando já tão surda a sua cabeça despenteada. Acaba por, pontualmente, proliferar na mansarda dos sonhos uma ou outra ponta espigada. Contra este ou aquele nó arrastado, que nem uma escovada teimosa pode desatar, não há outro remédio ou melhor esforço do que optar sem dó por cortar.
Faz agora um ano que nasceram em abundância novos melodiosos fios brilhantes. Haveria de ser indiferente ou não ouvir o seu tépido entrelaçar, estando já tão viva a sua cabeça alinhada. Acaba por, pontualmente, proliferar na varanda dos sonhos uma ou outra melena dourada. A favor deste ou daquele caracol engraçado, que nem um pente rigoroso pode travar, não há outro remédio ou melhor esforço do que atar ao Sol e admirar.
Faz agora um ano que olhou um ralo repleto de fios desertores. Haveria de ser indiferente ou não desesperar, sendo que uma vida é o terraço de uma cabeça de raíz preenchida. Contra este ou aquele vento enfadado, que insiste continuamente em soprar, há sempre o remédio e contínuo esforço de novas sementes a despertar.
Faz agora um ano que sonhou em abundância um ano melhor. Agora haverá de plantar mais um ano.... para o poder pentear.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

So this is Christmas...

... e tudo começa finalmente a dar frutos!
Pelas ruas surgem já gnomos coloridos, doces obreiros da paz, a distribuir o alento tantas vezes requerido, em cartas e mais cartas de tristeza, quando já tudo parecia perdido. Ao fim do dia, todos seguem para o lar como que puxados pelas renas de uma alegria quase religiosa, que reúne em cada casa um mais ou menos completo presépio. Renasceram das caixas de cartão, embrulhadas em folhas de jornal antigo, as bolas sortidas de histórias acumuladas a pendurar cuidadosamente na árvore de Natal de cada vida. Vale a pena reciclar as fitas de tolerância e pendurar também luzinhas de humildade, pulverizando ainda com perfume de paciência. Não estaria completa a tarefa se no topo não repousasse a estrela do amor, enquadrada pela esperança dos ramos verdinhos. Na base habitam os laços de carinho, selando diversos pacotes de sonhos a concretizar. Quando a noite já escura e fria encontra as ruas vazias, emerge da panela fumegante o grande bacalhau lavado que já chorou todo o seu sal e vem festejar uma nova ceia. Neste dia há lugar para todos, até para as travessas esquecidas durante o ano no aparador. Sobre a mesa partilhada entre todos, viva o bolo, rei da bondade, e as broínhas da amizade, não é tempo de amarguras. Do calor da lareira iluminada, chegam as lembranças de todos os que estão longe, aquecendo com o seu afago este serão. Que pelos dias em diante seja o Natal uma constante, urgentes que são fatias de força e rabanadas de optimismo.

A very merry Christmas and a Happy New Year, let´s hope it's a good one, without any fear.

sábado, 19 de dezembro de 2009

O Autocarro do Acaso

A viagem é a unidade básica de jornadas deste imenso campeonato. Uma folha quadriculada de partidas e chegadas entre percursos regionais ou de longo curso, dentro e fora de si. Há quem leve mais ou menos bagagem, há quem se aventure só com a roupa do corpo e mesmo quem parta sem nunca sair do lugar. Pelo meio pode sempre haver um atalho, uma escala ou um engarrafamento. Pode mesmo haver um enjoo ou um acidente de percurso, facilmente suavizado por uns óculos de sol e uma boa banda sonora. Entre encontros e despedidas, há quem parta para não voltar e quem regresse sempre, há ainda quem fique connosco mesmo depois do veículo se afastar. Diria de forma veemente que a maior das viagens é conhecer alguém. Abre-se então uma linha da rodoviária do tempo para embarcar num trajecto cujo destino se desconhece. E segue assim o viajante à chamada da voz amarelada do altifalante para o Autocarro do Acaso a que a Sorte o guiou. Fure-se ou não um pneu, haja sempre faróis de longo alcance para iluminar o caminho. A good will do verdadeiro viajante é que a partida é certa no seu valor, acrescidos certamente quilómetros vividos à entrada na gare de desembarque. E lá subsistem os dois vectores da grelha para os aventureiros da estrada: SEJA BEM-VINDO e BOA VIAJEM.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Um bom aluno

É a presença assídua, discreta mas sempre notada, na sala de aula. Tem apontamentos desalinhados num pequeno e velho caderno onde escreve sem esforço os tópicos de maior relevo com letra hostil, só por ele treinada e compreendida. Participa com eloquência e rigor sempre que pontualmente é exigível por si, colaborando também com silêncio incauto nos momentos em que qualquer questão ou comentário é absolutamente desnecessário. Precisa apenas da sua competente caneta vulgar e de breve reflexão para dar a resposta assertiva e inusitada que espera dele o bom Professor. Tem especial carinho pelos docentes rectos, interventivos e desfiadores que todos os outros estudantes especialmente detestam. Como um verdadeiro enfant terrible, não colhe a unanimidade dos colegas nem faz questão. Quando abordado convenientemente é sempre capaz da generosidade e simpatia que só os bons lhe reconhecem. Elabora os mais ilustres rascunhos e exercícios em folhas soltas de papel reutilizado que organiza desorganizadamente por ordem do seu temperamento anárquico e irrepreensível. Não passa horas seguidas a estudar porque conhece os prejuízos de uma privação abrupta da amplitude das ocupações, fazendo apenas de forma leve a parte final do trabalho, que completa o serviço de todos os dias em que a concentração e a auto-disciplina já fizeram quase tudo. E segue então com as sapatilhas gastas para a sala onde a sua existência é também, e sempre, e inevitavelmente, a melhor parte.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Mais cinco tostões

Um diálogo é, à semelhança de muitos outros insondáveis eventos da vida, um micro-mundo onde se deve depositar tudo o que se tem e findo o qual, invariavelmente, se perde e se ganha alguma coisa.
Nesse micro-mundo caminhamos de mãos dadas ou em facções apartadas, de olhos brilhantes ou de alma apagada mas nunca, nunca, nada fica como antes.
E nesse micro-mundo há também micro-ondas de descoberta e sensações que descogelam ou aquecem num instante, círculos em que nos damos prontos a servir.
E pode assistir-se a uma caminhada inteira a partir de um sofá almofadado, percorrer o universo num degrau gelado ou nos bancos de madeira entre livros, no corredor fortuitamente entre as horas ou de passagem pelas palavras surdas que já não resta dizer.
O diálogo conhece os mais avançados progressos da ciência... teletransportação de alta voltagem afectiva, ultrapassagem de geração por narração eloquente, imagiologia supra-espacial, metafísica intra-relacional, força motriz transfusional, implante onírico definitivo sem risco de incompatibilidade a nível global, de que todos são potenciais dadores...
E dos micro-momentos sobram macro-rescaldos de bonança, sobram mega-sorrisos e hiper-alívios, metro-ternuras que jamais terminam.
O resultado é um ilustre valor acrescentado sem taxa moderadora a acumular em suaves prestações de empática interlocução... grão a grão.