domingo, 22 de fevereiro de 2009

A esse Facínora

"Não me recordo se to disse alguma vez, mas creio que há dentro de nós, escondido, latente, um fascista comum, um ditadorzeco pouco refinado. Há-de ser como uma larva, ou um vírus - alimentando-se de nós, vivendo do nosso sangue - que se aloja nas imediações do sítio que nos comanda as vontades e que, quando desperto, nos obriga a querer vergar a vontade alheia e nos força a olhar o mundo pela medida do nosso umbigo. Não há que enganar: assim somos todos e nem tu nem eu havemos de ser diferentes. Será verdade que nem todos despertámos um dia com vontade de invadir a Polónia e que nem tu nem eu nos entretemos a gasear judeus, mas não há-de ser grande a distância que vai daqui ao querer que tu sejas a imagem que eu fiz de ti sem te consultar previamente. Quando muito, é uma questão de oportunidade. Ponham-me uma multidão patrioteira e sedenta de vingança à frente e também eu serei um facínora. Sê-lo-íamos todos, tenho a certeza, e é por isso que só respeito os líderes que tenham medo de si próprios, que reconheçam em si a presença do mal e que, por isso, estejam de sobreaviso, dispostos a lutar contra a besta no instante em que ela acordar da sua hibernação. É isto um democrata - aquele que luta contra o totalitário que tem dentro e que consegue vencê-lo e mantê-lo reprimido."
Manuel Jorge Marmelo
A esse facínora que nos mascara o ano inteiro de personagens que não queremos ser:
- Já não queremos ter máscara.
A esse facínora que nos induz a vestir os outros com o fato que melhor nos encaixa:
- Queremos despi-los desse fardo.
Ao ditadorzeco que nos convence de que somos o maestro da nossa própria vida:
- Sabemos que esta orquestra não é para nós!
A esse ditadorzeco que nos engana com a história do livre arbítrio, dos sinais e outras coisas que não são mais do que grãos de milho que deixamos a nós próprios de forma que o destino seja aquele que desejámos:
- Já não pretendemos ser escravos dessa falsa liberdade.
Ao fascista comum que nos obriga a exigir a reciprocidade no amor como defesa da nossa profunda solidão:
- Já não somos felizes a exigir o amor de ninguém.
Ao totalitário que nos evade até querer cruzar a realidade e os sonhos, sem nos deixar viver serenamente um mundo e outro em separado:
- A insatisfação que nos define não é definição para a Paz.
Neste meandro de pseudo-democracia humana escrita de azul, suplicamos em surdina por um 25 de Abril.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Da Sra. das Febres à S. João de Deus

Percorro desde miúda o caminho da Avenida Nossa Senhora das Febres à Rua São João de Deus. A pé. Vulgarmente em dias de Sol. Os anos vão passando e o percurso vai-se tornando mais curto.
Vamos perdendo as melhores e mais características pessoas da vila e assim, não há uma maneira mais literária de o dizer, despedimo-nos de um já saudoso espírito de vizinhança ancestral.
Nos dias em que os acompanhamos na derradeira caminhada, cada um se recolhe no seu pesar. Com rostos fechados, vemos os senhores de capa branca e gola vermelha a carregar estandartes. Grupos de homens ou mulheres de ar carregado comentam o passado e o fim por que todos passamos. Encontram-se pessoas que já não se viam há muito tempo e que tão cedo não voltaremos a ver.
Nesses dias não choram bébés nem ladram cães, não há malucos pelas ruas e até a maltinha das borbulhas parece apresentar-se à altura.
Nesses dias prosseguimos caminho mesmo que o sinal esteja vermelho e não há paragens, todos sabem o código de silêncio e o ritmo do passo lento que mantemos porque, na verdade, não há pressas quando fazemos por alguém a única coisa a fazer quando já não há, de facto, nada a fazer.
Nesses dias, quando partimos da S. João de Deus rumo ao destino onde não há futuro, sabemos que há menos alguém que fará parte do nosso futuro e sem a qual o futuro não será igual.
Frequentemente não custa subir de novo e regressar à S. João de Deus perante a simpática e atenta Igreja de São Brás. Mas custará a partir desse dia a ausência de alguém com quem comentar o sucedido. E entender que a maltinha das borbulhas não poderá perceber o legado.
Quando eu vou a pé da Sra. das Febres à S. João de Deus, não importa ir da porta 31 ao endereço 33. Não importava andar. Importava parar no caminho.

A confiança é um lugar estranho

"Um adulto é uma crinaça que o mundo inteiramente enganou."
António Alçada Baptista
Andar entre a multidão é hoje percorrer um impessoal e gélido corredor de hotel por entre quartos fechados, portas trancadas onde se pode ler "Do not disturb".
Talvez a medida da entrega à vida, à sociedade, ao futuro, ao trabalho e ao amor dependa apenas de uma questão de confiança - no mundo, em Deus e em si próprio.
Talvez a globalização envolva um espírito de generalização no qual o valor das instituições se sobreponha já, em verdade, ao valor das pessoas que, em conjunto, as constituem.
Desconfia-se da justiça, da política e da família, da entidade patronal, da Igreja e do sistema em geral.
Desconfia-se do poder e da oposição, dos grupos e dos independentes, das maiorias e das minorias, dos populares e dos anónimos, dos fortes e dos fracos.
Desconfia-se do pretérito, imperfeito se o foi, perfeito porque já não existe e mais-que-perfeito porque isso é para idealistas que não sabem nada da vida e um dia vão entender as coisas como elas são.
Desconfia-se - por causa da hipocrisia, do sofrimento e da mágoa - da honestidade, da felicidade e do amor quando eles surgem. Como na história em que não se crê na verdade depois de tanta mentira.
Desconfia-se de quem traiu e de quem pode trair, desconfia-se de quem nunca traiu e de quem talvez não vá trair porque senão já é estar a deixar margem para a traição.
Dizem que se deve confiar, desconfiando.
...
Já não se percebe se confiar é correr o risco de se defraudar, dar-se uma oportunidade de não ser defraudado ou dar o benefício da dúvida, aguardando, pacientemente, pela decepção.
Ou talvez uma definição qualquer, onde não entram palavras como defraudar, traição, decepção, em que confiar seja somente confiar.
No meio disto tudo já se desconfia da própria sombra porque dizem que quem desconfia não é de confiança.
E isto tudo porque é uma tremenda desilusão que o amor acabe, que a solidão nos invada, que às vezes nos abandonem e nos persuadam assim a deixar a vida ao abandono.
Desconfio que seja essa a razão pela qual desconfiamos, porque custa saber que nem a vida nem os outros existem para concretizar os nossos sonhos, ninguém o fará por nós e muitos não farão sequer nada a nosso favor.
Muitos outros sim, a esses devemos, depois de olhar cuidadosamente pelo óculo da porta, deixar entrar, e "disturb".

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Feminine

Há poucos anos, ainda a vida me era tão leve que carregava às costas apenas a mochila da escola, cruzei-me com uma Professora de meia-idade que ia ao meio-dia a correr para tratar do almoço. Sorridente desabafou numa rebeldia ténue e inconsequente "Hoje estou farta de ser mulher." Prossegui no ritmo lento da ignorância e ela na vertigem apressada da lucidez.
Entretanto o papel das mulheres na sociedade já fez correr muita tinta útil e também inútil. Talvez seja mais pudico o papel da mulher na sua própria vida enquanto capaz de se libertar das expectativas da sociedade e garantir o prazer próprio e autónomo do seu desempenho enquanto tal.
Numa altura em que os anais do universo apontam como histórica a conquista de pontos no percurso pela igualdade social, laboral e económica, eu diria apenas que, em linguagem mediana e categórica, a mulher deixou de ser um objecto para se tornar num objecto com novas funcionalidades.
Um brinquedo de requinte mais complexo e rentável que poderá convencer-se da sua qualidade no sentido de se tornar um pouco mais lisonjeado, menos aborrecedor e sobretudo, e apenas, mais sobrecarregado.
Continuamos a brincar aos homens e, desabafo aqui, esta brincadeira é inglória, trabalhosa e, acima de tudo, não faz nenhuma mulher verdadeiramente feliz.
Continuamos presas ao estigma da perfeição esguia e de cabelos longos, continuamos independentes e autónomas a alimentar a dependência dos outros.
Continuamos a colocar gotas de perfume e a abafar as lágrimas, a não poder gritar, a tratar de tudo, a fugir da solidão ou refugiar-se nela, a esperar que o amor nos preencha e a preencher casas onde não há amor.
Falta escrever uma página onde a sensibilidade signifique força e onde a inteligência, a independência e a exigência possam ser sexy.
Falta assentar o dia em que a paixão não precise de um amanhã, em que não seja necessário ser absolutamente necessária.
Hastear a bandeira e deixar cair a blusa mas sem salto alto, sem lentes graduadas nem cheiro a refogado - de sapatilhas, sem relógio e sem culpas.
Hoje sei por que nos cansamos de ser mulheres, porque hoje ser mulher ainda é adiar-se.
E todas, como aquela mulher de meia-idade ao meio-dia, vivemos a meias a nossa própria vida.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

E depois do adeus

Dizia Miguel de Sousa Tavares "Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram."
Na sôfrega vertigem do dia-a-dia, mergulhados nas rotinas sonolentas e doentias de egoístas soldados de guerrilha própria, imunes defensores de quimera pessoal, ultrapassamos barreiras e recolhemos medalhas e feridas.
De caminho há todo um trabalho de bastidores que se impõe numa estrutura, muitas vezes aparentemente enfadonha e pesada, de figuras que compõem o cenário da imponente e frondosa batalha deste terrível jogo que é a vida.
Um organigrama perfeitamente insubstituível de referências que têm o penoso papel de pertencer ao núcleo-duro dos seres que, de tão profundamente conhecidos, congregam o topo da imperfeição.
Formando um quadro quase passivo de tão seguro e inquestionável, aborrecem-nos com questões práticas e sem importância, ocupam o lugar com o pó dos anos e desencadeiam inúmeras pequenas querelas com as constantes questões práticas, pedidos de atenção, discursos repetidos, exigências profundas ou profundos silêncios de quem se recolhe como espectador.
Um dia, subitamente, por motivos que o próprio mundo e a nossa intrínseca razão paulatinamente ignoram, desaparecem.
Fica o vazio.
Recordações.
Sempre insuficientes.
De forma constrangedora, teimosamente ou não, sobrevivemos às nossas próprias catástrofes e tudo continua.
Como se de uma personagem estóica e animada se tratasse, somos presentes ao campo de batalha onde, com feridas ou medalhas, temos de deixar para trás companheiros. Alguns deles seres independentes de nós e, muitas vezes simultaneamente, outros eus de nós próprios, carcaças do que fomos um dia.
Prosseguir, agora fortalecidos ou não, e dar sentido ao caminho com o transporte do testemunho é a missão a cumprir.
As memórias encaixilhamos de dourado, os dias maus desaparecem e com eles se sauvizam imagens.
De repente há menos alguém que pede atenção e preenche a nossa vida com questões práticas.
De repente, afinal, não custava ter feito um pouco mais.
Era merecido um pouco mais.
Afinal pesa menos ter alguém às costas do que o fardo que se ganha em perdê-la.
Continua Miguel de Sousa Tavares "Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre."