sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Dirty Dancing

A dança é o universo de simetrias mais assimétrico que existe. É a história de um contrato silencioso, de uma paixão desigual. O exemplo de que duas mãos dadas podem representar, mais do que uma parceria, um jogo de forças. Um jogo sujo e despojado. Uma guerrilha com dois opositores numa mesma facção.
Há um que se permite mandar. Há outro que se deixa obedecer. Os gestos são revestidos de insinuações, de sórdidas subtilezas de engano, do exercício totalitário de uma intenção. O desafio é antecipar com leveza as instruções, reduzir a tensão da surpresa dos sinais, usufruir da beleza das expressões. O ritmo é o compromisso superior, o poema sobre o qual se desenham recursos estilísticos. As normas dissipam-se no rodopiar dos versos, nas esferas insondáveis da empatia, no odor da canção. Apenas o par prevalece.
Os corpos vão desenhar uma fronteira e depois vão escolher a melhor forma de a vilipendiar. Os pés vão usurpando, uns aos outros, o mesmo espaço. Os rostos vão perseguir-se para além da linha de conforto e vão disputar o mesmo ar. Não há meta, não há mapa, não há medição. A distância de segurança é uma utopia. A única regra é não largar a mão. A pista de dança é o palco para uma luta de poder. A mais estética e lírica batalha de atracção. A súmula perfeita entre o génio de mandar e a arte de obedecer.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Sodade

Às vezes não é dos humores da natureza. Nem é da natureza dos humores. É a falta de qualquer coisa.
É o drama da folha branca. É a vida em branco.
Às vezes não é que se pense demasiado. Nem é que se sinta em demasia. É um medo de qualquer coisa.
E perde-se a mão para o tempero. Perde-se a mão ao temperamento.
Às vezes não é do tempo passado. Nem é da passagem do tempo. É a espera de qualquer coisa.
Que não tem hora para chegar. Nem chega com as horas.
Às vezes não é sono. Nem é fome. É um cansaço por qualquer coisa.
E fica-se esvaziado de recheio. Fica-se cheio de vazio.
Às vezes nem é nada. Mas fica-se assim. A implicar com todas as coisas.
É qualquer coisa de sodade. É uma sodade qualquer...

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Mulher Mim

O meu elogio ao desempenho da Daniela nesta peça. Por tudo o que disse e fez no contexto da mulher dos nossos dias. Que está em todos os lugares sem ter, efectivamente, lugar. E por tudo o que não podia dizer nem podia fazer em tempo útil num palco mas que nos implicou a todos nós, espectadores, a dizer e a fazer dentro de nós próprios. O teatro tem destas coisas.
Este espectáculo fez-me reflectir sobre a minha condição de mulher naquele que julgo ser o meu papel mais determinante nesta cadeia de influência e de mudança na qual nos vemos todos inteiramente cúmplices e responsáveis – o papel de filha. Creio que a relação parental, mais do que a relação conjugal, jurídica ou profissional, é aquela que mais introduz conteúdo a esta temática. A relação que faz com que uma Mãe repense as suas funções e motivações na formação de outra mulher. A relação que faz com que um Pai questione as suas limitações de ser homem no acolhimento a uma tão avassaladora nova mulher. Que é a filha. Quando, um dia adolescente, eu perguntei ao meu Pai se, caso fosse da minha idade, namoraria comigo e ele me respondeu timidamente... – Não... És muito intelectual. – eu entendi a importância da superação e actualização dos valores, sobretudo ligados às concepções de perfil atractivo entre géneros, que um filho deve operar sobre o legado transmitido pelos pais. Ao reconhecer que muitas das suas perspectivas se encontram encarceradas nas fronteiras de um tempo, entender que a condição de educador de um Pai não é menos válida se necessitada de ajustes e remodelações sociais. Os filhos nascem com tal missão pelo legado, pela educação que têm a receber dos pais, que tantas vezes não se dão conta de que ao existir, ao crescer plena e conscientemente, os educam. Neste âmbito talvez fosse também importante questionar, com fervor, o papel da mulher na educação de um filho homem e em que medida não encontra, especialmente nesse momento, uma fortíssima oportunidade para desafiar o instituído sem egoísmos nem outras correntes moralistas em que se prender...

Este texto foi publicado no primeiro Caderno Magnólia. Uma colecção de depoimentos recolhidos a partir de espectadores de teatro. Este tem a voz das mulheres que assistiram à peça Mulher Mim. Obrigada.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Come as you are

Não pode haver hoje outro luxo senão o de poder sentir a textura da pele. A pele, ela própria, sem filtros, sem desculpas, sem conservantes. Vamos acumulando camadas como quem se agasalha para o frio. Vamos coleccionando fachadas como quem habita a sós um vazio. E a pele, ela própria, que nos embrulha com aparente inutilidade, fica prisioneira de todos os sentidos. A pele, ela própria, por onde andamos perdidos, esconde uma verdade adulterada. Irrespirável. Pergunto-me qual será a saída dessa estrada.
Mas eu posso ir contigo para os nós do novelo. E posso embrulhar-me nessas camadas noite adentro. E passear contigo pela rua. O meu humor pode quebrar o teu escudo. Podemos sentar-nos no chão sem medo de sujar a roupa. O meu calor pode derreter a tua capa. Vamos dançar lá ao fundo, fora de horas, depois das camadas. Eu posso fazer escorregar essa máscara. Abraçar-te. E despidos talvez possamos ler a pele.
Não quero filtros, não quero desculpas, não quero conservantes. Um dia eu vou chegar ao lugar onde assentam todas as camadas. Até lá esconderemos, com o pouco que somos, o muito que temos para dar.