Poema era o nome dela. Chamava-lhe assim por causa da música que trazia
consigo ao passar. Porque ela se recitava em voz alta nos dias felizes e se
sussurrava para dentro nos dias tristes. Tinha uma métrica que não era bárbara
nem alexandrina, era só sua. E olhá-la era sucumbir a um arquejo irresistível
de lirismo. Na verdade, ela era um reservatório de recursos estilísticos, cheio
de matizes, com muitos sentidos possíveis. E a vontade que dava era de segui-los
a todos, de lê-la sem parar, vezes sem fim, em todos os tons, com todas as
respirações. A cada leitura ela era sempre nova e era sempre mais, sempre
diferente. Com muitas ou poucas sibilantes, toda ela era um rendilhado de
tónicas e átonas. Era um soneto desrespeitado, uma ode em improviso, um
estribilho sem repetição. Ela era uma aliteração em m de mulher, de madrigal, de
maranharado, de marulhado, de metafórico. Irregulares na forma e no conteúdo, as
suas gargalhadas eram estrofes desatadas de doçura. E a sua graciosidade esboroava
na vida, como um punhado de versos numa folha branca. Livre, tinha em cada
gesto uma personificada graça, uma declamada intenção. No trato, a ligeireza de
um rondó, e, no carácter, a força vitoriosa de uma epopeia. Límpido, o rosto expressivo
tinha vírgulas e espaços, mas nunca pontos finais. Os lábios eram rimas sinuosas
em perfeita dicção, um paradoxo de paganismo e erudição. Nos olhos, uma elegia
sem tristeza, uma hipérbole de fantasia, um eufemismo de tudo. Se ela pudesse
ser escrita, ela não seria escrita, seria desenhada, manuscrita com a brandura
do momento, com a delicadeza espontânea da caligrafia arredondada. Se ela
pudesse ser escrita, o seu corpo versificado teria de ser esculpido por
artesãos num torno de palavras. Se ela pudesse ser escrita, seria em cadernos
lisos e perfumados, cadernos em número infinito, e muitas folhas soltas. Se ela
pudesse ser descrita, na anáfora interminável da memória, não poderia jamais
ser publicada. Porque todos ao pé dela pareceriam só mais uma prosa. E prosa
nenhuma poderá alguma vez ser Poema.
"Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples, tem só duas datas - a do meu nascimento e a da minha morte. Entre uma e outra coisa todos os dias são meus." Alberto Caeiro
quarta-feira, 18 de dezembro de 2013
sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
I have a dream
Sonho. Com a janela escancarada sobre os tomos do tempo, sobre o rio
ofegante e estático, sobre a tela encenada das casas, que aguarda o grande
acontecimento de qualquer coisa ou nenhuma. O ontem emoldurado e ténue. O
amanhã desvelado sob a cortina de tule orvalhada, esquadrinhado, espreitante e
esperto, desperto, cada vez mais perto de existir. Arrumado na encosta, o
auditório exangue de reservatórios de lembranças e depósitos de potenciais por
cumprir. Os meus braços bem dispostos sobre o parapeito, as minhas mãos
sorrindo recostadas na base e os meus olhos àvidos debruçados para além do que
é possível olhar.
Sonho. Com a amenidade escarlate do outono esperançado e a energia
setembrina de uma espécie de janeiro, de uma espécie de recomeço. A frescura que
se espreguiça à tona do momento, despida, com o cheiro soturno do prazer que
vem assoar-se a mim. A silhueta voluptuosa dos desejos renascidos, desenhada pela
lascívia silenciosa do tempo, das coisas que demoram. O prazer devasso de não
ter pressa e o mundo imenso de não ter medo. Um estímulo incontrolável para
sucumbir, para deflagrar, paulatinamente, sem restrições. O corpo como um
líquido que se espraia numa parede, que jorra pelo chão, para fora de si, que
espasma no vento, que contamina tudo.
Sonho. Com a clareza indiscernível do que é real, com a novidade
inefável do que não se permite prescrever. Os esquissos desistidos, os
rascunhos a lápis, tudo agora em cima da mesa, tudo agora passível de ser
rabiscado a caneta, tudo agora prestes a ser rasurado, reescrito, passado a
limpo. Com a naturalidade de não haver limpeza nenhuma, de haver só a verdade
das coisas que acontecem mesmo. No caderno assíncrono das concretizações, eu
própria, quando era esperado tardar, mais nova do que há anos, mais pronta do que
sempre.
Sonho. Com a textura concreta da própria matéria. Que posso querer
até onde não podia, que posso crescer até onde não cabia, que posso imaginar
para fora das fronteiras da previsão. A vida palpável, alcançável, tão certa e
tão tocável como a claridade tonta das manhãs, como a escuridão lúcida das
noites, como a sucessão de todos os dias. Sou eu, finalmente, a assomar a mim,
nesse espectro inesperado de uma profecia. Eu, em dose mais do que nunca, em tamanho
sem medida. E o universo todo outra vez meu. Outra vez possível.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2013
message in a bottle
Não tarda nada virá, tremendo, dizer que se lembrou de um poema, de
uma música, de um filme que viram juntos. Ou que encontrou um papelinho, uma
caixa plástica esquecida, uma peça de roupa que poderá fazer falta. Voltam
sempre. Pedirá o código postal para enviar pelo correio, depois escreverá uma
mensagem misericordiosa, fará um telefonema tardio ou tentará marcar um café. Não
tarda nada será ele a ter coisas para enviar por todas as vias, verdades por
submeter, recordações por encaminhar, sentimentalidades, revelações e desculpas
por endereçar. Voltam sempre. É por causa do casaco? Deixa o casaco na caixa do
correio, deixa pendurado na porta, deixa na mercearia, deita-o fora, fica com
ele. Afinal não é por causa do casaco. Então é por causa de quê? Não tarda nada
será ele, de volta, a enviar um amor confesso, tremido, com as letras todas,
com maiúsculas, pela primeira vez e pela última. A palavra adiada e temida,
agora arremessada às três pancadas, como recurso último, na derradeira
oportunidade, cobardemente tarde. No fim da linha, lá virão os desabafos profundos,
os arrependimentos, a urgência, as intuições. Talvez até uma enxurrada de
acusações, meia dúzia de ameaças, um punhado de ainda-vais-ver-que, oxalá-um-dia.
Voltam sempre. Nem que seja só pelo barro à parede, nem que seja só pela má
consciência, nem que seja só quando não há mais ninguém. As cartas saídas da manga,
que caem só depois do jogo, depois do resultado do jogo. Face a face com o
inevitável, já todas as qualidades serão reconhecidas, já todos os talentos
serão notáveis, já todos os esforços serão exequíveis, todos os planos
possíveis. A lucidez, o súbito interesse, a súbita disponibilidade, a súbita
viabilidade. Não tarda nada serão dele as mãos trémulas, com o seu coraçãozinho
ansioso, os seus nervos pueris, consumidos no ridículo de uma angústia
pequenina. Não tarda nada já tudo virá fora de tempo, já tudo será inútil. Mas
voltam sempre. Desmemoriados, desverticalizados, desmembrados daquilo que os
enviou para onde estão. Só que nessa altura já não há pachorra. Há só uma minúscula
saudade. Ou, em muitas ocasiões, a falta dela.
terça-feira, 10 de dezembro de 2013
a case of you
Não sei a que sabe a tua pele. Se sabe aos teus
dias densos e à tua saudade secreta de que fosse diferente. Se sabe ao teu
corpo lasso, onde carregas o peso de uma paz inacabada. Se sabe ao despropósito
da tua rudez, que arremessas ao mundo como defesa a nenhum ataque. Ou se sabe à
tua espada de criança perdida, que esgrima um recreio imaginário para não ter
de recordar o regresso a casa. Não sei se sabe a infusão de especiarias e a
madrugadas, a plantas secas e a palavras doces, renascidas num chá. Não sei
sequer se sabe a ervas, se as ervas forem colhidas e regadas, aparadas, vividas
para lá daqui. Não sei se sabe só ao sumo de um profundo cansaço, do teu
cansaço suado e triste. Não sei nem se te sei para além dessa epiderme
instável, onde transpira toda a poeira de ti. Não sei se te perfuro para além
do caos dessa paisagem incauta, onde borbulha a tua alergia e o teu pesadelo.
Não sei se te desnudo alguma noite para lá da casca. Sei só que te abraço os
braços morenos e que te atas a mim num único laço. Sei só que te amparo na
senda de uma fortuna só minha, às cegas, sem tacto, sem palato, palmo a palmo.
Sei só que te desejo num único sorvo mas que debalde te afago, uma a uma, as
camadas. Sei que te pertenço e que te cuido nesse sanatório de almas onde dissolvemos
os males que não podem sarar. E sei que esse lugar escuro onde ficamos, esse
mar imundo onde mergulhamos, sabe a pó e a perdas e a passado. Sei que a
amargura a que me sabes é só prelúdio da ternura que talvez no futuro saibas
ser. E sei que o sonho dessa conversão tempera o travo salgado a que sabe,
infinitamente, absolutamente, a tua pele.
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