Sonho. Com a janela escancarada sobre os tomos do tempo, sobre o rio
ofegante e estático, sobre a tela encenada das casas, que aguarda o grande
acontecimento de qualquer coisa ou nenhuma. O ontem emoldurado e ténue. O
amanhã desvelado sob a cortina de tule orvalhada, esquadrinhado, espreitante e
esperto, desperto, cada vez mais perto de existir. Arrumado na encosta, o
auditório exangue de reservatórios de lembranças e depósitos de potenciais por
cumprir. Os meus braços bem dispostos sobre o parapeito, as minhas mãos
sorrindo recostadas na base e os meus olhos àvidos debruçados para além do que
é possível olhar.
Sonho. Com a amenidade escarlate do outono esperançado e a energia
setembrina de uma espécie de janeiro, de uma espécie de recomeço. A frescura que
se espreguiça à tona do momento, despida, com o cheiro soturno do prazer que
vem assoar-se a mim. A silhueta voluptuosa dos desejos renascidos, desenhada pela
lascívia silenciosa do tempo, das coisas que demoram. O prazer devasso de não
ter pressa e o mundo imenso de não ter medo. Um estímulo incontrolável para
sucumbir, para deflagrar, paulatinamente, sem restrições. O corpo como um
líquido que se espraia numa parede, que jorra pelo chão, para fora de si, que
espasma no vento, que contamina tudo.
Sonho. Com a clareza indiscernível do que é real, com a novidade
inefável do que não se permite prescrever. Os esquissos desistidos, os
rascunhos a lápis, tudo agora em cima da mesa, tudo agora passível de ser
rabiscado a caneta, tudo agora prestes a ser rasurado, reescrito, passado a
limpo. Com a naturalidade de não haver limpeza nenhuma, de haver só a verdade
das coisas que acontecem mesmo. No caderno assíncrono das concretizações, eu
própria, quando era esperado tardar, mais nova do que há anos, mais pronta do que
sempre.
Sonho. Com a textura concreta da própria matéria. Que posso querer
até onde não podia, que posso crescer até onde não cabia, que posso imaginar
para fora das fronteiras da previsão. A vida palpável, alcançável, tão certa e
tão tocável como a claridade tonta das manhãs, como a escuridão lúcida das
noites, como a sucessão de todos os dias. Sou eu, finalmente, a assomar a mim,
nesse espectro inesperado de uma profecia. Eu, em dose mais do que nunca, em tamanho
sem medida. E o universo todo outra vez meu. Outra vez possível.
Sonho lindo!
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