quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

poema

Poema era o nome dela. Chamava-lhe assim por causa da música que trazia consigo ao passar. Porque ela se recitava em voz alta nos dias felizes e se sussurrava para dentro nos dias tristes. Tinha uma métrica que não era bárbara nem alexandrina, era só sua. E olhá-la era sucumbir a um arquejo irresistível de lirismo. Na verdade, ela era um reservatório de recursos estilísticos, cheio de matizes, com muitos sentidos possíveis. E a vontade que dava era de segui-los a todos, de lê-la sem parar, vezes sem fim, em todos os tons, com todas as respirações. A cada leitura ela era sempre nova e era sempre mais, sempre diferente. Com muitas ou poucas sibilantes, toda ela era um rendilhado de tónicas e átonas. Era um soneto desrespeitado, uma ode em improviso, um estribilho sem repetição. Ela era uma aliteração em m de mulher, de madrigal, de maranharado, de marulhado, de metafórico. Irregulares na forma e no conteúdo, as suas gargalhadas eram estrofes desatadas de doçura. E a sua graciosidade esboroava na vida, como um punhado de versos numa folha branca. Livre, tinha em cada gesto uma personificada graça, uma declamada intenção. No trato, a ligeireza de um rondó, e, no carácter, a força vitoriosa de uma epopeia. Límpido, o rosto expressivo tinha vírgulas e espaços, mas nunca pontos finais. Os lábios eram rimas sinuosas em perfeita dicção, um paradoxo de paganismo e erudição. Nos olhos, uma elegia sem tristeza, uma hipérbole de fantasia, um eufemismo de tudo. Se ela pudesse ser escrita, ela não seria escrita, seria desenhada, manuscrita com a brandura do momento, com a delicadeza espontânea da caligrafia arredondada. Se ela pudesse ser escrita, o seu corpo versificado teria de ser esculpido por artesãos num torno de palavras. Se ela pudesse ser escrita, seria em cadernos lisos e perfumados, cadernos em número infinito, e muitas folhas soltas. Se ela pudesse ser descrita, na anáfora interminável da memória, não poderia jamais ser publicada. Porque todos ao pé dela pareceriam só mais uma prosa. E prosa nenhuma poderá alguma vez ser Poema.

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