sábado, 25 de setembro de 2010

Just breathe

Às vezes chego à conclusão de que a nossa vida é só uma rua movimentada por onde as pessoas vão passando. Uma rua onde alguns têm casa própria e onde outros arrendam apenas um imóvel para mais tarde acabarem por se mudar. É mentira que a nossa vida seja um T2 apertado que aguarda apenas por um inquilino vitalício. É mentira que a nossa vida seja só um automóvel que nos dá boleia para o sítio mais propício. Não, é mais do que isso. A nossa vida é uma avenida indefinida onde várias figuras circulam. Onde alguns peões passeiam diariamente, como que religiosamente. Onde outros entram apenas de passagem, até por engano. Nesta travessa não há um plano. E não deve haver engarrafamentos nem sentidos proibidos. E deve existir estacionamentos e sinais para os que andam perdidos. Os transeuntes devem ter sempre o traçado aberto para poderem seguir adiante e também para mais tarde poderem voltar a entrar. E nós próprios turistas de outras ruas onde ausentes passamos a habitar. Visitamos outros bairros, gravamos novas pegadas, percorremos urbanizações sem fim, até ao último esforço, encontramos os locais mais ermos e profundos, partimos para jardins lascivos, onde nos deixamos ficar, sem perder de vista aquela nossa morada. Não vale a pena tentar fechar a circulação, de nada serve bloquear a passagem, o ditame da ordem está gasto. Os habitantes passam, deixam o seu rasto, nós nunca largamos a encruzilhada. E lá, no lufa-lufa da vertigem movimentada, nós somos só o rosto que respira dessa estrada.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Rentrée

E subitamente todos regressamos às nossas secretárias. Arrumamos as malas de viagem e voltamos aos passeios rotineiros que nos transportam para a realidade quotidiana. Por esta altura a Graça e o Morais fecham os cofres das bolas de Berlim fresquinhas e os gelados que sobraram nos cafés começam lentamente a ganhar gelo. Os nadadores-salvadores arrumam os calções de banho e as meninas da praia regressam à escola, onde vão acabar por perder o bronze. Os autocarros voltam a encher-se de pessoas com ténis e livros e borbulhas e romances adolescentes. A política, a justiça e o futebol voltam a preencher a nossa agenda ao mesmo tempo que as indústrias de chocolates caros fazem novamente abrir as suas linhas de produção. Em meia dúzia de dias as folhas caem de caducas e nós continuamos a teimar em calçar as sandálias até uma chuvada encher de terra molhada os nossos pés. Tudo faremos para não deixar a nossa vida congelar. Os projectos brotam em catadupa esticando os dias que se vão encurtar e as noites serão mais doces quando o frio chamar ao seu posto o chá e o leite quente. Alguns amores de Verão vão amadurecer à lareira, outros vão entrar em hibernação. A escuridão alimentará o rigor das noitadas de trabalho e os cachacóis o charme do frio. Nessa altura a iluminação pública será a companheira dos transeuntes tardios e os chapéus-de-chuva os abrigos das conversas mais inspiradoras. A geada voltará a encher de frescura o odor das manhãs e será esse o cheiro misterioso dos dias vencedores. As temperaturas tratarão de tornar os sonos mais ternos e os dias menos ociosos, favorecendo ainda os desejos de castanhas assadas. Setembro tem esta melancolia do abandono de tudo o que se tem a perder para voltar a recomeçar. Setembro talvez seja uma espécie de Janeiro verdadeiro que marca a cadência do passar dos anos. E os calendários dos desafios. E os votos de coragem. Sobrevivemos. E necessitamos absolutamente de vestir camisolas de lã e depois vestidos e depois novamente agasalhos. E assistir ao fado perpétuo da natureza que se despoja sem medo. Para nascer outra vez. E subitamente regressar é o movimento imperioso que permite a cada um decidir voltar ou não a partir.

domingo, 5 de setembro de 2010

A Metafísica das Marés

O mar apresenta-se talvez como um infinito incomensurável de impulsos ignorados onde insistimos enfim penetrar. Insinua-se hercúleo e estimulante como um vago horizonte evasivo que se estende numa perpétua e muda hesitação entre ir e voltar. Afaga e seduz as massas nesse impasse interdito da inconstância das ondas e obedece implacável à coragem impossível de quem, sem açaimo nem rédeas, o pretende domar. No oceano como na vida há certas águas imprudentes e destemidas impassíveis de se navegar.
Sobre as ondas o mesmo poder proibido que concerne às incógnitas, a mesma manipulação profética que a racionalidade académica tenta construir sobre a natureza. Ambas as concepções tão inúteis e redutoras perante o poder libertador de um mergulho coloquial e sem erudição, surdo em relação à honesta eloquência dos versos e à manifesta vagueza da ciência.
O mestre mar ensina-nos a saltar para acompanhar os movimentos mais bondosos, adaptando o corpo ao ritmo insondável que nos embala. Explica-nos que temos de nos deixar ultrapassar pelas oscilações mais fortes, sob pena de acabar irremediavelmente por nos levar. Convida-nos a avançar para levadas de feição e obriga-nos e desertar quando um impulso irascível parece a todo o custo puxar para um lugar onde não queremos ir. O mar talvez não seja o lugar mais seguro para quem procura apenas a certeza de ficar mas será certamente o cenário ideal que quem pretende sentir a vertigem iminente de partir.
Para corresponder convenientemente aos desideratos do gigante mais ardiloso, às vezes é preciso erguer-se lentamente sobre a prancha, outras vezes há que saltar para ela a pés juntos, sem esperar que em nenhum dos casos o resultado seja propriamente maravilhoso. O terror é a assunção da fraqueza da vontade própria ante a rudeza de um movimento superior que debalde nos engole e se estende impávido numa areia qualquer... Surfar na rebentação pode ser, na vida como na física, o voto da superação do estado de equilíbrio instável. Alcançar a estabilidade pode ser, mais na vida do que na engenharia, uma manobra improvável.