domingo, 25 de abril de 2010

Ósculos

A solene loucura de uma coisa correr bem quando, na sua teia de complexidade e obscurantismo, teria essa tal coisa tantos trilhos conjecturais por onde correr mal.
Vejamos por analogia a suave metáfora de um beijo.
Quando se unem por duas bocas quatro lábios no surdo poema de um beijo unem-se também, e não o ignoremos, dois mundos de medos e sonhos assombrosamente egoístas e diferentes. Nessa ligação emergirá talvez uma súbita e mais lírica alteridade de oscular.
Quando um somatório de cerca de 64 dentes preparados e dispostos a cortar, triturar ou rasgar, habituados inclusivamente a protagonizarem o orgulho narcisista de um sorriso, se anulam em favor de um momento superior há um avassalador evento de humanidade que nos preenche.
Igualmente prodigiosa será a dança de mais ou menos proeminentes narizes. Não menos prodigioso será o ardil com que eventualmente se manobrem também próteses oculares e dentárias, prontas a fustigar... Cada alma tem os seus inefáveis detalhes.
Quando o veremos melhor saberemos então que até a rotina trilhada no sabor de um ósculo será ela não mais do que a vitória sobre um obstáculo que poderemos enfim comemorar.
Eloquente será ainda celebrar tal ardil da prevalência do afecto sobre a destruição num tal 25 de Abril onde também à dignidade indolor devemos profunda gratidão.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Je ne regrette rien

Lembras-te daquele pessegueiro entre cujos ramos em flor me tiraste em tempos aquela que seria, para todos os efeitos, a mais bonita fotografia de sempre daqueles tempos?
Morreu.
Muito me estranhou um dia destes quando, enquanto passava casualmente pelo quintal, o vi ausente. Lá me explicaram então que os pessegueiros são árvores extremamente perecíveis, de parca longevidade. Lá vão crescendo lentamente e escapando a uma ou outra maleita, lá vão esboçando ao clima uns quantos sorrisos para escapar às intempéries, vai-se contando com eles para demulcir todos os estios e eis quando, sem aviso, o inevitável acontece.
Morrem.
Muito teria a dizer sobre pessegueiros e outras árvores de fruto mais ou menos frutíferas, mais ou menos sazonais e efémeras. Ainda assim, devo porém referir que deve caber no orgulho de uma árvore caduca ter um dia oferecido razoáveis pêssegos para roer ao calor, sendo também de acrescentar que não são os seus contados dias que a impedem ainda de figurar em algumas das que podem ser, para todos os efeitos, as melhores imagens de sempre duns determinados tempos.
Mortos.
Estarão de cansaço e alegria quando um dia penetrarem novamente uma sombra tranquila duma qualquer árvore de novos tempos entre cujos ramos espreitem desalmadamente pequenas flores. Na brisa sedosa que agita impávida os seus milhentos pólenes correrão alados todos os tipos de arbustos mais ou menos falecidos, a agitar em espirros e comichões novos serões. Nessa tarde saberão, exaustos, que, para bem ou para mal dos tempos, a perenidade não é para todos.

domingo, 11 de abril de 2010

Ne me quittes pas

Numa cidade estranha, entre ruas agitadas de turistas, comerciantes, artistas, pedintes e afins, jaz incógnito o objecto perdido. Acaso será possível concretizar a impossibilidade de o achar? Acaso não serão as relações sociais uma imensa e intensa banca de perdidos e achados? A todo o instante não seremos todos um objecto deixado em algum lugar... Em cada quadrante não seremos todos um dono aflito que não se cansa de procurar... Acaso será audível esta súplica, este apelo de que somos simultaneamente remetentes e destinatários, por tudo o que somos susceptíveis de ter abandonado em alguma parte e tudo o que seremos susceptíveis de vir nesse sítio a encontrar. Para o prodígio concorre o instinto fiel da boa vontade, emanado da boa fé e da confiança com que se regam possíveis opositores. Para o prodígio concorre a ultrapassagem da descrença e do pessimismo, a vitória sobre o derrotismo, a força da boa consciência de quem, não crendo, não se opõe a acreditar. Entretanto jaz inquieto o objecto perdido que surdo sussura "não me deixes..."... O tempo é absolutamente precioso quando no frenesim dos passos largos lhe grita apertado o seu dono "não me deixes..."... Quando os dois se encontram há um mundo inteiro de improbabilidades que se iluminam. Quando os dois se encontram há um mundo inteiro de impossibilidades que se sobrevivem.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Les Jours Tristes

Do que tratam os dias tristes como os de Yann Tiersen...
Da pior das saudades, a saudade de si próprio. A saudade do calor já no gosto pelo frio, a sombra de ficar já na luz de partir. O augúrio do futuro por vir. A alegria maior de viver o mais absoluta e profundamente um dia triste.
Da tristeza que é sempre uma velha conhecida, mesmo num lugar estranho. A imensa fraternidade de a rever tão longe e tão perfeitamente... Enquanto que qualquer pedaço de terra serve para ser feliz, há lugares especiais que melhor se prestam a ser triste.
Da tempestade de Ruïsdael cristalizada entre os mil triângulos do Louvre, no cheiro dos seus corredores. Agora enfim já sei a que cheiram. Cheiram a uma imensidão que simultaneamente nos agiganta e nos esmaga. Cheiram a passado ilustre e lustroso, cheiram a vitórias e a morte. Cheiram à maior guerra contra o esquecimento, à luta da memória. Cheiram à maior derrota contra o tempo... E cheiram a dias tristes.
Dos humanos. Das vidas dos humanos que passaram sem regresso, a esses humanos como nós. Todos esses humanos que amaram, sonharam empreender a maior arte. Todos esses humanos que questionaram a sua mortalidade, que temeram e que prevaricaram, que lutaram, que tiveram dias tristes.
Do mais energúmeno sentimento de tristeza, pergunto - será o negro a ausência de cor ou a mais completa intensidade de todos os tons?
...
E eis senão quando se vem a encontrar do mais pleno dia triste... a noite mais feliz.

Ça c'est pour moi le plus beau et le plus triste image du monde


segunda-feira, 5 de abril de 2010

Nous sommes ensemble

Jantámos demoradamente as experiências que fomos.
Ceámos agradavelmente os novos que somos.
Amámos, disjuntos, o conjunto de pássaros que lançámos ao ar.
Recebemos, adjuntos, o conjunto de nuvens de que nos ousámos abrigar.
E rimos.
Mas na esfera a que nos opomos não estivemos sós.
Antes fomos cada um no seu antes e no seu após.
A viajar desfiámos os nós.
A viajar vigiámos o nós.
Juntos.