quarta-feira, 30 de junho de 2010

Os pontos finais são secos

Os pontos finais são secos. E absolutamente estéreis. Fatais, subversivos. Os pontos finais são as bolas mais quadradas de todas. São as bolas mais inconscientes que alguém um dia já viu, incapazes de se saber a rebolar para outra coisa qualquer.
Os pontos finais são apostas em dar a uma frase um tom austero e a pontuar finalmente um pensamento com um ar assustador e convicto e seco de quem se leva extremamente a sério. De quem quer enfim e afinal acabar por chegar ao final.
Mas a secura de um ponto final tem mais humidade e suor e amargura do que uma vírgula qualquer. Pode ter mais humor e génio do que as pálidas reticências sem tom. E até mesmo exclamar um grito contundente com mais vigor do que o histérico ponto de exclamação. Não há forma de terminar uma mensagem sem chegar a um final contundente que pode ser não mais do que um manisfesto desejo de recomeçar a escrever mais e sempre e continuamente.
Em suma, os pontos finais são o pior tipo de bolas, as bolas armadas em quadrados. A quadratura dos finais tem sempre algo de cíclico e circular. E os começos são sempre quadrados antes de os começarmos a lapidar.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

That's what friends are for

Para captar os melhores momentos mesmo que fiquemos mal na fotografia. Para dizer disparates a tal ponto de já não se lembrar onde ia. Para falarmos tudo mesmo sem dizer. Para nos fazer passar um dia inteiro a comer e a beber. Para sermos mais e melhores do que alguma vez seríamos. Para nos conceder uma realidade bastante superior ao que alguma vez sonharíamos.
E por mais que estejamos encharcados faz-nos sempre sentir leves. E ainda que demorados todos os minutos parecem breves. Adiamos as horas e deitamo-nos tarde sem saber o segredo. Pelo qual no dia seguinte parece sempre que tudo acabou demasiado cedo...

sábado, 26 de junho de 2010

Desculpa(s)

A culpa é um inimigo insuportável.
Os culpados devem pedir desculpa e encontrar no perdão maior e melhor descanso, ao invés de cultivar o vício vil de um qualquer escape aparentemente desculpabilizante.
A culpa é um inimigo execrável.
Os desculpados optam por inventar desculpas e sucumbir a uma tal espécie de vitimização da qual acabam por nunca, efectivamente, se desculpar.
A culpa é deixarmos estar alguém como um objecto de vidro mesmo próximo da aresta de uma mesa.
E sorrir.
E depois dizermos que foi um tremor ou um sopro de vento ou um acaso infeliz, mais do que nós próprios, a deixá-lo cair.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Just can't get enough

Deste canto embaraçado falo do abraço. A uma mão, a um amor, a um mar, a um mundo. No geral um abraço é sempre o cerrar de um laço profundo. No geral um abraço é sempre o esmagar do ar que ocupa espaço entre nós, encurtando a distância através de compridos nós. No geral um abraço é o que me empurra e me aperta contra ti, sendo que deve ser exactamente por causa dessa forma cruzada que lhe chamamos carinhosamente um xi. Há também quem lhe chame amplexo... mas isso é estar a acrescentar erudição inútil a um conceito tão pouco complexo. Ainda assim, não quero com isto dizer que não seja uma arte motora com muita técnica, requerendo tantas vezes elasticidade tensora, inspiração e até iluminação cénica. Quem os vê de repente até pode pensar que se trata duma espécie de arte marcial em que os corpos se degladiam. Mas na realidade é a forma mais normal de amassar os afectos que se adiam. Os abraços são, no seu mais intenso querer, muito superiores a uma soma entre atacar e defender. Os abraços servem para contarmos às escondidas coisas que queremos lembradas. E também para comemorarmos jornadas de outras coisas que temos esquecidas. Os abraços têm os efeitos terapêuticos mais diversos e até ao momento não lhes foram reconhecidos traços imperfeitos ou resultados adversos. Ainda assim, os desejos de abraços trepam como larvas e fazem, muitas vezes, as pessoas escreverem sobre coisas parvas. Dependendo das ocasiões posso preferir dos que há mais gigantes ou outros dos que são mais pigmeus. Mas agora, mais do que antes, apetecem-me os teus.

sábado, 5 de junho de 2010

No topo do bolo

Hoje lembrei-me do primeiro dia em que engoli, sem querer, um caroço de cereja. No início veio a aflição de quem, inadvertidamente, deixa escorregar alguma coisa que não devia. Depois veio a interrogação sobre quais os danos e saídas possíveis de um tal hóspede indesejável. Lá me explicaram que pode acontecer, que não há nada a fazer senão deixar que o caroço siga o seu curso e acabe por encontrar a única saída possível. Concluí que tinha tido a experiência de encontrar um caroço aventureiro ou, por outra, experimentar conceder a um caroço uma aventura.
Com o decorrer dos tempos acabei por ir, pontualmente, engolindo um ou outro caroço. Alguns deles especialmente indigestos e indesejáveis. No início veio a aflição de quem, inadvertidamente, voltou a deixar escorregar alguma coisa que não devia. Depois veio a constatação dos danos e saídas possíveis. A cada qual me encontrei nesse fim de tarde abafado onde me ensinaram que pode acontecer, que não há nada a fazer senão deixar que o referido siga o seu curso e acabe por encontrar a única saída possível. Na realidade, talvez os caroços de cereja e os caroços da vida acabem por ter exactamente o mesmo fim.
Os anos passaram e as cerejas continuam a chegar com os dias compridos, sempre renovadamente encarnadas e tentadoras. Sempre deliciosas e irresistíveis. Sempre com caroço.
Continuo a pensar que vêm sempre aos molhos para insistir em educar-nos essa habilidade de conseguir sorver o miolo das coisas e deitar fora o caroço. Para insistir em lembrar-nos que quando se chega a um topo onde há uma cereja, chega-se também a um cume com caroço.