sábado, 5 de junho de 2010

No topo do bolo

Hoje lembrei-me do primeiro dia em que engoli, sem querer, um caroço de cereja. No início veio a aflição de quem, inadvertidamente, deixa escorregar alguma coisa que não devia. Depois veio a interrogação sobre quais os danos e saídas possíveis de um tal hóspede indesejável. Lá me explicaram que pode acontecer, que não há nada a fazer senão deixar que o caroço siga o seu curso e acabe por encontrar a única saída possível. Concluí que tinha tido a experiência de encontrar um caroço aventureiro ou, por outra, experimentar conceder a um caroço uma aventura.
Com o decorrer dos tempos acabei por ir, pontualmente, engolindo um ou outro caroço. Alguns deles especialmente indigestos e indesejáveis. No início veio a aflição de quem, inadvertidamente, voltou a deixar escorregar alguma coisa que não devia. Depois veio a constatação dos danos e saídas possíveis. A cada qual me encontrei nesse fim de tarde abafado onde me ensinaram que pode acontecer, que não há nada a fazer senão deixar que o referido siga o seu curso e acabe por encontrar a única saída possível. Na realidade, talvez os caroços de cereja e os caroços da vida acabem por ter exactamente o mesmo fim.
Os anos passaram e as cerejas continuam a chegar com os dias compridos, sempre renovadamente encarnadas e tentadoras. Sempre deliciosas e irresistíveis. Sempre com caroço.
Continuo a pensar que vêm sempre aos molhos para insistir em educar-nos essa habilidade de conseguir sorver o miolo das coisas e deitar fora o caroço. Para insistir em lembrar-nos que quando se chega a um topo onde há uma cereja, chega-se também a um cume com caroço.

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