terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

man in the mirror

Vem do lado de lá, estranhamente inconfundível entre as outras pessoas. Ele reconhece-a pelo caminhar balouçado, entortando ligeiramente o mesmo pé direito. E surpreende-se pela forma como o seu desajeitado modo de pisar resulta tão bem com a leveza assimétrica e perfeita das generosas ancas dela. Depois identifica a mesma postura nos dedos das mãos, esguios e finos, esgueirando-se pontualmente nas marrafas fartas do cabelo teimoso. As mesmas mãos compridas, mas dela, paradoxalmente mais brandas e mais claras, perplexamente iguais. Em segundos, ela desvia os caracóis das mesmas sobrancelhas abundantes, mas mais desenhadas, quando enfoca um castanho profundo no fundo do mesmo arqueado dramático do seu olhar. Tão semelhante a expressão de sonho e de susto, e o idêntico pestanejar distraído quando decidem voltar a cabeça para outro lado. É o mesmo gosto pelas roupas claras, a mesma maneira de traçar a mala de couro, a mesma tendência pelo lado mais interior do passeio. Aquela versão delicada e eufemística da sua maneira desleixada de ser banal. E o inconfundível atributo de reparar em tudo sem fazer alarido, sem dar sinal de nada. Enquanto os dois se aproximam, ele tem a certeza de que ela vai abordá-lo com um sarcasmo delicioso, uma alusão irónica aos caracóis ou uma piada desconcertante sobre o destino em que ambos acreditam sem querer. De tal forma que, quando ela se aproxima, ele adivinha-lhe o seu cheiro sem perfume e sabe que, quando ela o tocar, vai querer perfumá-la desse mesmo odor. Enquanto eles caminham para a colisão que ele espera, ele sabe que, se ela for mesmo igual a ele, não vai evitar de desarmá-lo com uma frase tonta, e vai fazê-lo parar com uma suavidade só sua, mas mais atraente, e a seguir fazer uma conversa encantadora sobre uma coisa qualquer. Enquanto as sapatilhas rafadas dele se cruzam com as sandálias velhas dela, ele tem a certeza de que, se ela for mesmo igual, vai voltar atrás logo de seguida, com um gesto descontraído e cheio da energia dele. Ou, melhor, se ela for mesmo igual a ele, até talvez espere um pouco mais, só para tornar tudo mais demorado. Só para depois querer voltar atrás. Só para depois querer ter voltado atrás.