sábado, 25 de abril de 2009

Cravos Vivos

Ainda bem que é 25 de Abril. Ainda bem que, mesmo que com manhas o evitemos, o calendário exerce todos os anos a ditadura implacável de não nos poupar nenhum dos dias, nenhum de todos os dias previstos do tempo que tem que passar.
Não me refiro aos filmes que temos de ver passar na televisão sobre Salgueiro Maia (Deus o tenha em merecido descanso) nem me refiro às personagens que temos de ver em discursos estudados de cravo ao peito nem às outras personagens que, em casuais entrevistas de rua, não sabem bem explicar o motivo pelo qual é feriado.
Não me refiro sequer à quantidade de famílias cujo curso esta data mudou, há quem deva a vida a este dia do emblemático 74 e há ainda quem desejaria que nesse ano o Abril não tivesse tido um 25.
Não é a nada disso que me refiro.
Refiro-me ao som dos passos na gravilha do Grândola Vila Morena, ao frio da noite em Santarém nas faces corajosas, ao vermelho de vida dos cravos já cortados da terra.
Refiro-me a fazer com que a manhã seguinte não seja só mais uma manhã.
Refiro-me a todos os medos que nos cravam o peito quando, já de vida adormecida, lembramos o que é acordar uma Revolução.
Refiro-me a quantos damos no cravo e na ferradura, a quantos sapos bem verdes temos de engolir para um dia termos o vermelho de que se precisa para viver um 25 de Abril dentro de nós próprios.
Questiono-me quantos 25 de Abril será preciso provocar para que as mentes acordem para o que tem que ser.
Questiono-me quantos 25 de Abril será preciso provocar para poder ser o que quero ser.
E questiono-me se todos os 25 de Abril podem chegar para que a liberdade possa algum dia prevalecer.
Se todos os Zeca Afonso poderiam ditar a bucha dura e a razão que a sustém, se todos os Paulo de Carvalho poderiam ensinar a viver um depois do adeus.
Não me refiro ao banalizado e esquecido 25 de Abril de 74, perdido na mágoa do passado e no futuro das gerações.
Refiro-me aos cravos cortados da terra, aos cravos cravados no peito e que tantas vezes deixamos murchar.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Quanto tempo o tempo tem

E preciso eu de viver 23 anos para chegar, com algum grau de certeza, a esta brilhante conclusão: é tudo uma questão de tempo.
Todos temos um número infindável e mesmo inusitado, tremendo, audacioso, de coisas que gostaríamos de fazer nesta vida. Ou mesmo em outra. Não há limite. Contabilizando ainda tudo o queremos fazer e não sabemos, o que vamos tentar mas não vai prestar, e também a quantidade de vezes que vamos decidir mudar e desejar tudo outra vez, é possível, com uma álgebra melindrosa e susceptível, somar uma magnífica panóplia de experiências que, muito possivelmente, será impossível de reunir em tempo útil.
Poderíamos contratar vidas de aluguer para acabar o trabalhinho mas esse tempo já não seria o nosso.
De facto, a vida de cada um é irrepetível, única, insubstituível (se quisermos dizer assim), porque cada qual se arranja como pode para encaixar no relógio uma ínfima parte do que gostaria.
Escolher - tarefa maravilhosa e ingrata, fascinante e frustrante... Implica sempre perder alguma coisa, muitas coisas talvez, sem perder de vista o objectivo principal.
Há, de facto, coisas que fazem mais sentido do que outras mas não nos percamos do assunto, não falamos de sentido, falamos de tempo.
Oferecemos o nosso tempo aos que amamos, ao que nos dá prazer, a meia dúzia ou mesmo uma dúzia de ninguéns que também podemos vir a amar e que, esperamos nós, nos podem dar prazer. Passamos uma eternidade a gerir o amor, o prazer, para mostrar o nosso melhor e ser como somos. Oferecemos também tempo para que os outros nos mostrem o seu melhor, tempo para aprender a vê-los como são, ainda que, muitas vezes, pelo caminho, algumas destas ofertas nos possam, mais tarde, parecer uma perfeita perda de tempo...
Vendemos o nosso tempo no trabalho. Alguns fazem um bom negócio. Para outros pode ser uma grande roubalheira... Mas não falemos disso.
O pior mesmo é quando muitos de nós sentem que ninguém quer o seu tempo, nem dado nem vendido, resultado - a pior angústia de todos os tempos. Mas todo o mau tempo tem um dia seguinte, todas as tempestades têm uma bonança, todos os contra-tempos uma resolução.
Vou dizer outra coisa importante que descobri, há sempre alguém, algures, de tempos a tempos, que aguarda ansiosamente pelo nosso tempo, é a coisa mais preciosa que temos, portanto, sempre que surja a ocasião, deve arranjar-se sempre um bocadinho para essas pessoas.
O tempo de cada um nunca chega para dar a mão a todos os mendigos, matar a fome a todas as bocas, adoptar todos os cãezinhos abandonados... mas enfim.
Ainda assim qual o motivo pelo qual tanta gente quer ganhar o Euromilhões? É para que lhe sobre tempo para fazer o que gosta e também para poder fazer o que gosta sem levar tempo a trabalhar para lá chegar.
Infelizmente para muitos, nem o tempo todo chegaria.
Mas outros têm dificuldade em arranjar um tempinho para serem felizes.
Aqui fica contada a estória, espero que não vá fora de tempo, - é preciso ser feliz atempadamente.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Passas do Algarve

E ouço isto:
"Mas tu evoluíste como o caraças!"
E sou mesmo capaz de concordar.
O passado significa precisamente aquilo que já passou.
Passaram os dias de cabeça passada em que já tudo me passava pela cabeça.
Passou o desespero de só querer fazer um passe a quem chutasse para canto, passar a batata quente, ou mesmo até passar alguém a ferro.
Passadas estão as loucuras em que só me faltava querer dar umas passas em alguma substância esquisita que preenchesse o buraco que me trespassava.
E ficava passada com aquela angústia de quem tinha comido alguma coisa estragada... talvez fosse mesmo uma coisa mal-passada.
Até que talvez seja o dia de dar o passo seguinte, deixar a passada apressada e voltar ao ritmo de passeio, ver quem passa no paço.
Faltava entender que todo o tempo é uma passagem, que a vida é uma estação na qual somos passageiros.
Que quando chega o comboio, se tivermos passagem, é necessário entrar, antes que seja passada a hora.
Porque tudo é passageiro e até as passas da vida, mesmo depois de um impasse, passam.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

"Inocências"...

Lá fora a chuva cai... e cá dentro talvez também.
Dizem que sou uma inocente. Uma romântica.
Presumo, pelo tom, que seja um defeito, uma afirmação do prejuízo do valor.
Sim, de facto, sou mesmo.
Tenho a inocência de acreditar nos outros e esperar deles o melhor. Beneficiar a dúvida até surgir o pior. Tenho a inocência de esperar sempre conseguir. E o romantismo de crer alcançar. Tenho a inocência de não virar as costas e fugir. E o romantismo de ter sempre mais alguma coisa para dar. Sou a inocente que diz sempre "bom dia" e ainda espera resposta. Aquela que não perde de vista o cume enquanto trepa a encosta. Sou a romântica que não se importa de passar por parva perante os idiotas. E que ri em surdina desse imenso país vazio de que são patriotas.
Os outros ainda julgam que nos fazem infelizes com o seu desdém, que nos magoam com o chico-espertismo da treta. E olham-nos de cima para baixo quando na verdade, voamos ao alto da leve consciência, como um cometa. Não pedem desejos se vêem uma estrela cadente porque preferem o facilitismo da descrença e se afundam num espírito decadente. Inocentes...
E escrevo na época em que se recorda um homem bom, inocente, que pregaram a uma cruz.
Como ele, todos os inocentes e românticos têm a missão de ressuscitar.
Amanhã o Sol vai brilhar.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Equilíbrio

Um destes dias recordei em conversa um grande desafio da minha vida: depois de gatinhar, palrar, caminhar, falar, comer pela própria mão, ir à escolinha, etc.
A minha primeira e mais autêntica conquista de autonomia: aprender a andar de bicicleta.
Engraçado isto, mil anos depois dou por mim novamente a lutar para atingir o equilíbrio. A pedalar por esta vida que pontualmente nos rouba as duas pequeninas rodas traseiras.
E, sempre que isso acontece, lá vêm as tardes de primavera, a calma e a persistência, a ira e a desistência, o corpo a tremer entre os pedais e as pedras do caminho, as mãos calejadas a tentar dominar um guiador que, de momento, parece ter vontade própria.
É ver lágrimas, sorrisos, é ver joelhos e narizes esmurrados, é ver sangue e depois iosina, é ver feridas e depois crostas, e depois cicatrizes discretas, e depois novamente arranhões.
Vêm os pais e amigos, vizinhos e conhecidos a dizer que já está na altura de aprender, a oferecer capacetes, joelheiras e cotoveleiras, para que custe um pouco menos.
Mas às vezes tem de se arriscar a pele, arrancar sem medo, tentar sem rede, de cabelos ao vento, às vezes sem ninguém, numa busca solitária e desprotegida.
E assim, nesta imponente jornada, cada um pedala como pode. Cada qual tem o seu meio, o seu ritmo...
Há quem pedale com cestinho e campaínha, no tartan, em pista coberta. Há durões que fazem BTT. Há quem deslize penosamente sobre o asfalto tórrido e seco. Há quem saia em contra-relógio e chegue mesmo a ter camisola amarela. E há quem quem passe a vida inteira a tentar. E ainda quem nunca deixe o triciclo.
Seja qual for o caso, o importante é partir.
E confiar em quem diz que, vencido o desafio, nunca se esquece.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Antes de Chegar

Aceito o repto de uma amiga.
Enumerar 8 coisas que gostaria de fazer antes de morrer, antes de se findar o caminho, de estar tudo feito, de não haver rigorosamente mais nada a fazer.
É um desafio leve sobre um tema pesado. Sabe bem aligeirar grandes dramas, questões obtusas...
Mas não será já demasiado ligeiro este viver de todos os dias com planos de curto alcance minados de coisas práticas nas quais vamos enterrando o sentido do caminho?
Caberá em 8 tópicos tudo o que nos move, tudo o que nos evade... tudo o que matamos, tudo o que nos sobrevive?
Ou serão demais esses 8 itens para dizer uma coisa tão simples como: estou aqui para sonhar e espernear pelo que me acontece, e a pagar para ver o que me acontece, com todos os recursos que tenho e aqueles que vou ganhando, aconteça o que acontecer?
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Aqui vai:
1) Deixar muitas vezes que me façam sentir as pernas tremer.
2) Dançar as melhores músicas.
3) Espremer muitas noites até ser de manhã.
4) Encontrar o amante perfeito.
5) Percorrer a Europa de comboio sem comida de jeito nem banho que possa ter esse nome.
6) Ir a Moçambique colocar num frasquinho a vida à qual a minha família nunca pôde regressar.
7) Fazer qualquer coisa de verdadeiramente importante por alguém, que possa justificar este oxigénio todo que respiro.
8) Partilhar isto tudo com filhos e, se possível, netos, que dirão: "Que tipa porreira!".
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Uff........ é uma responsabilidade enorme ter desejos, quer seja pela forma como procuramos concretizá-los, quer seja pela maneira como habilmente os transgredimos, porque tudo é dinâmico, trocam-nos as voltas, trocamos também as voltas e surgem novas metas, novos desejos a formular.
Por tudo isto, o compromisso deve ser editável, reformulável e, sobretudo, permeável...
Mas, ainda assim, deixo a sugestão.
Reflectir no que nos move, no que nos acorda, no que nos define...
Mesmo que seja só um rascunho sujo de borracha, ondulado pelas lágrimas secas, rasurado pela ira, suado pelo Amor e por tudo mais que viver constitui.
E, antes de chegar, sempre a sábia frase... "be careful what you wish for".