domingo, 29 de março de 2009

Como descrever?

"E dois corpos, já o disse, não carecem de mais do que da fugidia linguagem dos sussuros, dos beijos que eriçam a pele, dos arquejos que preparam a doce deflagração de um amplexo. O idioma topográfico da epiderme transpirada é o único que importa - o único que é preciso dominar quando não se trafica mais do que o amor. Que diferença faz se esses dois corpos não são capazes de se entender plenamente utilizando o vago código das palavras? Que importa a gramática de raiz latina quando duas bocas estão demasiado próximas para que qualquer vocábulo possa ser dito."
Manuel Jorge Marmelo
Nada a acrescentar.

sábado, 21 de março de 2009

Às escuras

Recentemente, recordei com um velho amigo um episódio paradigmático da minha adolescência.
Vinha mais cedo para casa (já não me recordo exactamente dos contornos) porque não havia luz na vila inteira, não sei bem, houve uma avaria demorada. No caminho perdi completamente a ideia daquilo e, por isso, quando cheguei em frente à casa da minha Avó, toquei repetidamente a campaínha, sem entender por que razão ninguém aparecia para me deixar entrar.
Engraçado isto, como em tantas outras ocasiões da vida, ninguém tinha culpa. Eu não me lembrei que tocar não resultaria e quem havia de abrir não poderia adivinhar a presença de alguém sem escutar o som. Quando não há luz, não adianta tocar às campaínhas, é um esforço desperdiçado, não existem condições para que se produza o barulho do tilintar estridente, ninguém vai ouvir, as portas não se vão abrir.
Todo o esterco físico é expelido e canalizado para o esgoto. Em caso de acidente é também absolutamente lavável. Já o lodo psicológico tem de ser assimilado pelo organismo cognitivo, lentamente e penosamente levedado, refinado, convertido em combustível para a vida - na melhor das hipóteses.
Quando se está às escuras não há outra saída, não há outra solução senão a imobilidade, a paciência... Aguardar que venha a luz.
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(e bater à porta?????!!!..............................................)

quinta-feira, 19 de março de 2009

Só para mim

Nestes dias o John Mayer pode ser qualquer alguém do centro comercial. Pode ser o sujeito da caixa que partilha um sorriso cúmplice pelo anterior cliente chato. Pode ser o bonitão que saiu às compras com a Mãe. Pode ser o dread envergonhado na loja de lingerie. Pode ser o intelectual teso que vasculha CDs na caixa das promoções. Ou até... ninguém.
A partir da entrada a inevitável metamorfose revela a super-mulher que sabe o que procura e a incontestável Sra. Dona das Pechinchas.
Todas as mulheres vivem várias primaveras. Para ser mais precisa, doze primaveras por ano. Doze momentos de glória em que, passadas as chuvas, novos dias vencerão.
Com o saco do miminho na mão esquerda, enquanto os proeminentes saltos altos marcam o ritmo nos corredores mil vezes palmilhados, ouve-se, longínquo, em sussuro, o John Mayer cantando o inflamável Your Body is a Wonderland...
Só para mim.

domingo, 15 de março de 2009

Andorinha

Com nome que já é em si uma espécie de diminutivo carinhoso para velhos parentes, chega para a reprodução a raínha dos dias quentes.
Chega com as flores, o pólen e os insectos do calor, os cheiros da Natureza, o pôr-do-sol que deliciosamente tarda e a estação do amor.
Penetra de preto e branco quando a paisagem se pinta de cor para lembrar que tudo se renova devagarinho. Por isso reitera o seu voto de liberdade mas também o compromisso com o ninho.
Como num poema, deixa em África a saudade de partir mas constroi nos beirais a alegria de voltar.
Diz o dito popular que mesmo que uma parta sem regresso, o ritual de todos os anos se mantém como um ciclo superior que sempre se repete. Como contava Alberto Caeiro, é esta a eternidade que o Universo promete.
Quem recorda Bordalo Pinheiro, lembra no abrigo da varanda, todos os dias do ano, que passadas as chuvas novas flores brotarão.
E, assim que a vemos voar, cremos nisso. Não?

sábado, 14 de março de 2009

Final Feliz...?

E questiono o que se procura num final feliz.
Usemos as novelas como barómetro, nada como um bom melodrama televisivo comercial.
Dantes, a protagonista ultrapassava imensas barreiras, esquemas e enganos, oportunistas e estigmas familiares até, no último episódio, casar com o príncipe - o amor da sua vida.
Neste momento, a protagonista cede aos esquemas e enganos, tropeça nos estigmas familiares e casa com o oportunista. Posteriormente, ultrapassa imensas barreiras e finalmente, no último episódio, fica com o príncipe - o amor da sua vida. (Depois tratam dos papéis, não interessa.)
Começa a haver até enredos em que o oportunista se transforma em príncipe, em que a protagonista conta já com o apoio dos filhos para avalizar o príncipe, etc. Não importa que haja casamento no final, um divórcio pode até ser bem-vindo para apimentar o argumento, mas subsiste um denominador comum - ultrapassam-se barreiras, existem sempre esquemas e enganos, estigmas familiares, e ela fica sempre com o amor da sua vida.
(Ou, pelo menos, aquele que seria o amor da sua vida até à data do final das gravações. Se a história continuasse... não sabemos porque, se calhar, finais há muitos... e muitos nunca são felizes.)
Voltamos à história do caminho. Um final feliz será quando alguém encontra um caminho que sente ser o seu, que sente que deverá percorrer durante aquele sempre que é enquanto dura, enquanto ninguém vem destruir os cenários porque está na hora de gravar outra novela, enquanto se sente feliz.
Depois, certamente, ou não, haverá um novo final que, para bem da sua felicidade, não será feliz.
Como alguém diz, a vida é cheia de nuances e temos de aprender a viver connosco, com tudo o que de bom e de mau acontece, para ainda sermos capazes de nos proporcionar mais finais felizes até ao fim do campeonato. (Aqueles que vieram só ver a bola, são capazes de se perder.)

quarta-feira, 11 de março de 2009

O Caminho

"Ser crescido é perceber que não há certezas.
E depois é saber encontrar um porto seguro, um ponto de referência no meio do mar das nossas desilusões e incertezas.
Quando tudo o que constituía a base da nossa vida, aquele pilar fundamental, se desmorona... ficamos com esta tarefa inglória e angustiante de tentar descobrir o nosso caminho. E tanto tempo passamos a tentar descobrir o caminho... que não percebemos que a vida em si é o caminho, e ela vai passando por nós..."
Não há nada que possa substituir uma voz amiga que desfaz o nó, ilumina a sombra da dúvida e assim torna possível a crença absoluta de que este é o trilho certo.
Há quem passe uma vida inteira sem se cruzar com alguém assim.
Há quem passe uma vida inteira sem ter quem lhe transmita esta poderosa verdade.
Por eles partilho aqui o meu privilégio.
Obrigada.

sábado, 7 de março de 2009

Licença Sabática

Entende-se por Licença Sabática um período de interrupção de actividade, vulgarmente gozado por investigadores de nível bastante superior, no sentido de aprofundar pesquisas, recolhendo experiência e conhecimento a tempo integral.
Para o leigo comum trata-se concretamente de não fazer nada durante um bocado, aguardar o alcance de um estatuto académico mais sério e verosímil, tendo, de certa forma, o usufruto de maior margem de manobra e disponibilidade para descansar.
À margem das considerações de senso comum sobre cientistas e intelectos supra-sumos, a verdade é que é difícil perceber que parar significa mais do que não fazer coisa nenhuma.
Estar quieto a ver o tempo passar não será de todo um motor útil para passar o tempo mas talvez seja, em todo o caso, uma forma cautelosa e consciente de não se deixar passar pelo tempo.
Acordar para a vida e para si próprio, observando serenamente em redor, ajuda a evitar que o redor nos adormeça como que em cenário defunto. Olhar em volta antes que o mundo nos troque as voltas e seja tarde demais para dar aquela volta de que se necessita.
Não será para quem quer mas apenas para quem leva isto de viver verdadeiramente a sério. Quem é demasiadamente exigente e atento para ir vivendo. Suficientemente forte e corajoso para suportar o terror da mudança. Claramente inconsciente na possibilidade de descobrir que a descoberta pode ser mais infeliz que a ignorância. Moderadamente louco para assumir a hipótese de estar redondamente errado.
Independentemente da crítica, das barreiras, da falta de verbas afectivas e das dificuldades em obter mecenato psicológico, estes investigadores, na vida como na ciência, como missionários, jamais abandonam a sua causa, levando a cabo a redacção da sua tese.
Não haverá futuro na Torre do Tombo desta audaciosa jornada nem Nobeis descobridores de tesouros humanos sem estes tristes nobres heróis salvadores de si próprios.
Por uma hora, um dia, uma noite, um mês, um ano...., o mundo, o trabalho, a vida e os outros aguardam a conclusão da pesquisa. Esperam pela paragem que é caminho para andar. Respeitam o momento de quem se recolhe. Consentem a ausência de quem está presente ao presente. Dão licença.
E o sabático licencia-se a sê-lo.
(Entenda-se por Licença Sabática um investimento a fundo na vida e em si próprio.
Para o leigo comum, amuar, ser esquisito.)

domingo, 1 de março de 2009

Vida de Cão

Como seria bom ter quatro patas bem assentes no chão, um faro irrepreensível para encontrar o que se procura e ser o inquestionável melhor amigo de alguém.
Ter a responsabilidade de guardar uma casa, arrumar objectos queridos de forma inalcansável, analisar forasteiros, trincar pernas marotas e receber festas de recompensa.
Como seria maravilhoso percorrer uma multidão desconhecida sem medo e ter uma trela bem segura à mão de quem amamos.
Alçar a pata para a vida, marcando o território de tudo o que nos interessa contra usurpadores e sentir tanto conforto em qualquer jardim como na sanita de nossa casa.
Como seria libertador partir de casa, saltando muros e quebrando correntes, rumo a uma expedição dolorosa e competitiva, por entre fugas, lutas e noites de insónia, pela paixão da nossa vida. E regressar após um mês de conquista sem mazelas nem problemas de consciência.
Como seria mais simples ladrar repetidamente para repelir quem não é de confiança e uivar nos momentos de saudade pela ausência de alguém.
E enfrentar com coragem o abandono, percorrendo os caminhos do frio, da fome e da solidão, sabendo que se fez tudo o que era humanamente possível.
E sonhar em liberdade o futuro que pode estar ao dobrar da próxima esquina.