quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Sementes dos Tempos

Faz agora um ano que cortou em abundância os já mudos cabelos longos. Haveria de ser indiferente ou não mais um corte, estando já tão surda a sua cabeça despenteada. Acaba por, pontualmente, proliferar na mansarda dos sonhos uma ou outra ponta espigada. Contra este ou aquele nó arrastado, que nem uma escovada teimosa pode desatar, não há outro remédio ou melhor esforço do que optar sem dó por cortar.
Faz agora um ano que nasceram em abundância novos melodiosos fios brilhantes. Haveria de ser indiferente ou não ouvir o seu tépido entrelaçar, estando já tão viva a sua cabeça alinhada. Acaba por, pontualmente, proliferar na varanda dos sonhos uma ou outra melena dourada. A favor deste ou daquele caracol engraçado, que nem um pente rigoroso pode travar, não há outro remédio ou melhor esforço do que atar ao Sol e admirar.
Faz agora um ano que olhou um ralo repleto de fios desertores. Haveria de ser indiferente ou não desesperar, sendo que uma vida é o terraço de uma cabeça de raíz preenchida. Contra este ou aquele vento enfadado, que insiste continuamente em soprar, há sempre o remédio e contínuo esforço de novas sementes a despertar.
Faz agora um ano que sonhou em abundância um ano melhor. Agora haverá de plantar mais um ano.... para o poder pentear.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

So this is Christmas...

... e tudo começa finalmente a dar frutos!
Pelas ruas surgem já gnomos coloridos, doces obreiros da paz, a distribuir o alento tantas vezes requerido, em cartas e mais cartas de tristeza, quando já tudo parecia perdido. Ao fim do dia, todos seguem para o lar como que puxados pelas renas de uma alegria quase religiosa, que reúne em cada casa um mais ou menos completo presépio. Renasceram das caixas de cartão, embrulhadas em folhas de jornal antigo, as bolas sortidas de histórias acumuladas a pendurar cuidadosamente na árvore de Natal de cada vida. Vale a pena reciclar as fitas de tolerância e pendurar também luzinhas de humildade, pulverizando ainda com perfume de paciência. Não estaria completa a tarefa se no topo não repousasse a estrela do amor, enquadrada pela esperança dos ramos verdinhos. Na base habitam os laços de carinho, selando diversos pacotes de sonhos a concretizar. Quando a noite já escura e fria encontra as ruas vazias, emerge da panela fumegante o grande bacalhau lavado que já chorou todo o seu sal e vem festejar uma nova ceia. Neste dia há lugar para todos, até para as travessas esquecidas durante o ano no aparador. Sobre a mesa partilhada entre todos, viva o bolo, rei da bondade, e as broínhas da amizade, não é tempo de amarguras. Do calor da lareira iluminada, chegam as lembranças de todos os que estão longe, aquecendo com o seu afago este serão. Que pelos dias em diante seja o Natal uma constante, urgentes que são fatias de força e rabanadas de optimismo.

A very merry Christmas and a Happy New Year, let´s hope it's a good one, without any fear.

sábado, 19 de dezembro de 2009

O Autocarro do Acaso

A viagem é a unidade básica de jornadas deste imenso campeonato. Uma folha quadriculada de partidas e chegadas entre percursos regionais ou de longo curso, dentro e fora de si. Há quem leve mais ou menos bagagem, há quem se aventure só com a roupa do corpo e mesmo quem parta sem nunca sair do lugar. Pelo meio pode sempre haver um atalho, uma escala ou um engarrafamento. Pode mesmo haver um enjoo ou um acidente de percurso, facilmente suavizado por uns óculos de sol e uma boa banda sonora. Entre encontros e despedidas, há quem parta para não voltar e quem regresse sempre, há ainda quem fique connosco mesmo depois do veículo se afastar. Diria de forma veemente que a maior das viagens é conhecer alguém. Abre-se então uma linha da rodoviária do tempo para embarcar num trajecto cujo destino se desconhece. E segue assim o viajante à chamada da voz amarelada do altifalante para o Autocarro do Acaso a que a Sorte o guiou. Fure-se ou não um pneu, haja sempre faróis de longo alcance para iluminar o caminho. A good will do verdadeiro viajante é que a partida é certa no seu valor, acrescidos certamente quilómetros vividos à entrada na gare de desembarque. E lá subsistem os dois vectores da grelha para os aventureiros da estrada: SEJA BEM-VINDO e BOA VIAJEM.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Um bom aluno

É a presença assídua, discreta mas sempre notada, na sala de aula. Tem apontamentos desalinhados num pequeno e velho caderno onde escreve sem esforço os tópicos de maior relevo com letra hostil, só por ele treinada e compreendida. Participa com eloquência e rigor sempre que pontualmente é exigível por si, colaborando também com silêncio incauto nos momentos em que qualquer questão ou comentário é absolutamente desnecessário. Precisa apenas da sua competente caneta vulgar e de breve reflexão para dar a resposta assertiva e inusitada que espera dele o bom Professor. Tem especial carinho pelos docentes rectos, interventivos e desfiadores que todos os outros estudantes especialmente detestam. Como um verdadeiro enfant terrible, não colhe a unanimidade dos colegas nem faz questão. Quando abordado convenientemente é sempre capaz da generosidade e simpatia que só os bons lhe reconhecem. Elabora os mais ilustres rascunhos e exercícios em folhas soltas de papel reutilizado que organiza desorganizadamente por ordem do seu temperamento anárquico e irrepreensível. Não passa horas seguidas a estudar porque conhece os prejuízos de uma privação abrupta da amplitude das ocupações, fazendo apenas de forma leve a parte final do trabalho, que completa o serviço de todos os dias em que a concentração e a auto-disciplina já fizeram quase tudo. E segue então com as sapatilhas gastas para a sala onde a sua existência é também, e sempre, e inevitavelmente, a melhor parte.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Mais cinco tostões

Um diálogo é, à semelhança de muitos outros insondáveis eventos da vida, um micro-mundo onde se deve depositar tudo o que se tem e findo o qual, invariavelmente, se perde e se ganha alguma coisa.
Nesse micro-mundo caminhamos de mãos dadas ou em facções apartadas, de olhos brilhantes ou de alma apagada mas nunca, nunca, nada fica como antes.
E nesse micro-mundo há também micro-ondas de descoberta e sensações que descogelam ou aquecem num instante, círculos em que nos damos prontos a servir.
E pode assistir-se a uma caminhada inteira a partir de um sofá almofadado, percorrer o universo num degrau gelado ou nos bancos de madeira entre livros, no corredor fortuitamente entre as horas ou de passagem pelas palavras surdas que já não resta dizer.
O diálogo conhece os mais avançados progressos da ciência... teletransportação de alta voltagem afectiva, ultrapassagem de geração por narração eloquente, imagiologia supra-espacial, metafísica intra-relacional, força motriz transfusional, implante onírico definitivo sem risco de incompatibilidade a nível global, de que todos são potenciais dadores...
E dos micro-momentos sobram macro-rescaldos de bonança, sobram mega-sorrisos e hiper-alívios, metro-ternuras que jamais terminam.
O resultado é um ilustre valor acrescentado sem taxa moderadora a acumular em suaves prestações de empática interlocução... grão a grão.

domingo, 22 de novembro de 2009

Memória

A memória é essa trouxa enxovalhada mais ou menos bem-vinda que faz de nós saltimbancos entre tempos, alpinistas de íngremes montanhas de sonhos, marinheiros de vagas de passados com mais ou menos sal.
A memória é essa estola felpuda que nos afaga em dias ventosos e também o peso que carregamos a subir escadarias de obstáculos.
Sempre lá em todos os tempos, mesmo naqueles em que o tempo escasseia.
E se por vezes lutamos pela manutenção dos objectos e outros elementos físicos, como um escudo de consagração vigente a impedir que a lembrança se desvaneça, o contrário também acontece. A destruição das provas e testemunhos de má memória na tentativa de suavizar e adormecer as recordações que teimosamente lhe sobrevivem.
Tanto nas guerras do mundo como nas batalhas pessoais há ruínas desavindas e líderes polémicos, há leis de protecção e heróis por homenagear.
Há património para alienar... há património por classificar...
Basta apenas que possa prevalecer a narrativa mais verosímil e aberta, entendendo que todos os vestígios e personagens evocam sensibilidades... e são válidos na história.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Danos Urbanos

Navega-se em ruas como mares secos onde ninguém cumprimenta, onde ninguém tem nome, onde ninguém importa. Os corredores de betão em homenagem a qualquer coisa que nos esmaga de pequenez. Passa-se pelo tempo agarrado ao ponteiro sem ver conversar as horas. Há velhos e cães e pedintes com estatuto decorativo incómodo que alguém votou à não importância. Há lixos e mágoas e gente perdida com estatuto de inutilidade social que alguém votou à não relevância. E trituram-se os dias com a pressa mórbida de quem atordoa uma verdade inconfidente. Os restos das noites leva-os a chuva, passa-se a ferro esse rosto enrugado ao nascer do dia. O céu é tão pesado que qualquer dor lhe parece leve. E leves seguem mil passos anónimos sem deixar marca. E no barulho intenso de todos os trânsitos, o silêncio das madrugadas. E no súbito interlúdio de todas as multidões coloridas, a solidão das manhãs. Nesse orvalho sombrio, tu. Sempre tu. Nunca esquecido. Oscilando entre o espaço ocupado, entre o tempo preenchido, entre o bafo da urbe, abafado. Sempre espaço para ti, para o teu tempo perdido.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Pretending

Nesses que fingem já não se crê mais.
Fingindo, assim, ser alheio a fingimentos e outras coisas que tais.
Das máscaras trémulas que insistem assumir,
Dos momentos de susto em que as deixam cair,
Sobra apenas o cenário, iluminado ou obscuro, em que decorreu a cena.
Antes guardassem a arte para o palco, para o ecrã da TV ou para a tela de cinema.
Perde-se a crença entre as vis intenções.
Vale mais ceder à pressa das primeiras impressões,
Do que embarcar na mentira de um riso forçado,
Do que manter o elo de um gesto embaraçado,
De um fundo baço e sem conteúdo,
Apelo do acaso fortuito de um ego miúdo,
Mergulhado no óleo obtuso de querer parecer.
Esta vida encardida não é o que poderia ser,
Mas tão somente uma ilusão vadia,
Impressa em folhas de resolução fugidia,
Rumo ao amanhã de entrada pequenina,
Onde a esfera que roda fica aquém do que se imagina.
Nessa dança tonta das múltiplas identidades,
Não se joga a favor de todas as possibilidades,
Apenas daquele imperioso e preciso momento,
Em que a verdade da sombra feliz ultrapassa a barreira do fingimento.

domingo, 18 de outubro de 2009

(A)largar

Largos são os passos a que nos aproximamos com a maior brevidade de tudo o que desconhecemos.
Largos são os dias que levam a despedirmo-nos de todos os que já não têm mais passos, largos ou estreitos, para dar.
Largo é o caminho em que nos cruzamos redondamente com quem não queremos.
Largo é o trilho em que buscamos ansiosamente com quem nos falta cruzar.
Largos são os dias tristes em que a mágoa ocupa toda a largura.
Largos são os momentos felizes onde não há estreitos para amarguras.
Largos são os corações generosos onde até consigo caber estendida.
Largo é a praceta harmoniosa onde perco e encontro.
Ao largo é onde quero que deambulem todos os males que assustam e incomodam.
Ao largo flutuam as verdades desse universo tão estreito que é só meu.
Largas seriam as mentes capazes de, não sendo estreitas, as alcançar.
No estreito de todos os estreitos mal iluminados onde, larga, deambulo, jazem estritas as memórias capazes de me deter.
Largas são as costas que carregam este mundo tão estreito de histórias e futuro que, em esforço, consigo conter.
Largamente.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Sensibilidade

Não se diz, não se aprende nem se ensina, não se aconselha.
Não vem nos livros nem na internet, não dá na televisão.
Mas existe.
Acredita-se sem ver e... espera-se pela prova.
"As pessoas cada vez mais amam o forte. É fácil amar o vencedor. O rico, o poderoso, o governante. Agora, a medida da humanidade, a métrica da humanidade, da verdadeira humanidade está em amar o frágil. Você é capaz de amar aquele que já foi forte e hoje é fraco? Aquela rosa que já foi bonita e perfumada e que hoje é murcha? Aquele professor que já foi sábio e inteligente que era adorado por todos os alunos e que hoje, coitado, é repetitivo? Não tem meio de perceber que há um ciclo da vida em que as pessoas merecem ser respeitadas pelo que são, não por aquilo que vão aparentando ser. É amar este essencial. Eu sou oriental, sou chinês e portanto percebo a circularidade do tempo. O tempo, para nós, não é aberto. Percebe isso?"
Roberto Carneiro

Educação

Alguém mais acreditado do que eu para o dizer. Alguém mais credível do que eu para que eu própria não duvide do que digo. E a esperança de que o resultado das palavras seja mais amplo do que simplesmente serem ditas.
Recomendo a leitura do texto na íntegra. Repetidamente.
"Algumas das pessoas mais bem-sucedidas do mundo são as que sofreram mais fracassos. O primeiro livro de J. K. Rowling foi rejeitado duas vezes antes de ser publicado. Michael Jordan foi expulso da equipa de basquetebol do liceu, perdeu centenas de jogos e falhou milhares de lançamentos ao longo da sua carreira. No entanto, uma vez disse: "Falhei muitas e muitas vezes na minha vida. E foi por isso que fui bem-sucedido."
Estas pessoas alcançaram os seus objectivos porque perceberam que não podemos deixar que os nossos fracassos nos definam - temos de permitir que eles nos ensinem as suas lições. Temos de deixar que nos mostrem o que devemos fazer de maneira diferente quando voltamos a tentar. Não é por nos metermos num sarilho que somos desordeiros. Isso só quer dizer que temos de fazer um esforço maior por nos comportarmos bem. Não é por termos uma má nota que somos estúpidos. Essa nota só quer dizer que temos de estudar mais.
Ninguém nasce bom em nada."
Manifesto de Obama para os alunos

sábado, 26 de setembro de 2009

Não, obrigada.

Nisto de viver e aprender parece haver também uma cultura, esta não emergente e nem sequer contemporânea, mas de uma persistência quase perversa e transversal aos tempos.
- É preciso ser duro e ser esperto.
Adjectivos pouco eloquentes de uma filosofia, também ela, pouco inteligente.
A premissa da acção, da imposição, da sobreposição, a astúcia rasa de um qualquer "salve-se quem puder" que devia ser tão inútil em sociedade, para os cretinos, como para os ratos em alto-mar.
A insensibilidade ao trauma sob a forma de um qualquer penso rápido com espinhos e a ditadura do sofrimento - próprio e, sobretudo, alheio - como um éter de anestesia, um meio para um qualquer fim já de si vazio de todos os conteúdos e anti todos os fundamentos de civilidade.
Os atalhos criados como uma rede secundária aos caminhos da educação, da boa formação, da elegância e da cordialidade serão vias rápidas para todos os becos em que otários e arrogantes se encontram sem saída.
Se o labirinto da civilização e da sociabilidade se funde no eixo em que, sem ofensa para os bichinhos, os humanos se transformam em animais...
Não, obrigada.

sábado, 19 de setembro de 2009

Intelectualismos

Pesam, inevitavelmente, cada vez mais, os escalões hierárquicos de intelectos para os quais as referências culturais são o barómetro mais tentador.
- Conheces esta banda? Este livro? Este realizador?
Os chamados "obrigatórios" são usados como factor crítico de integração neste ou noutro patamar dos meandros sociais.
Diria eu, a cultura não deve servir de critério de seriação e nem, tão pouco, imiscuir os grupos da corrente open mind de serem tão ou mais ecléticos e verdadeiramente modestos do que toda a gente.
Entendo então que o paradigma cultural pode ser, neste ponto, e infelizmente, uma questão tão mais embrenhada de motivações grupais e influências recíprocas de referências comuns do que propriamente o interesse genuíno fruto do percurso individual de cada um.
Realizo, desta forma, com alguma decepção, que a maioria dos grupos de intelectuais, pseudo e afins, evocam cinema, literatura e discografia característica da mesma forma que um adolescente aficionado debita mecância e obedientemente a marca de jeans, ténis e penteado da sua integração e identificação geracional.
Como um bando de criativos de óculos de massa pode esperar um bolo diferente com os mesmos ingredientes... - que é, afinal, uma coisa tão pouco original.
Tão perto e tão longe dos grupos de senhoras maduras fãs de um ou outro cantor popularucho, defensoras do cubo mágico e acérrimas embaixadoras do tupperware.
Tão perto e tão longe do grupo de senhores maduros doutorados em sueca, especialistas do aftershave que arde e da previsão futebolística de bancada.
Pelos becos da teia deambulam de rótulo "sem rótulo" os outsiders, eternos ignorantes sem fundamento nem contexto, impossíveis de engavetar, imprudentes como um candidato independente às eleições que tem apenas duas opções - ser o esquecido dos protegidos ou o paraíso dos indecisos.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Admitida

Fecho o envelope dos papéis impressos e cheirar a novo e com eles abro a porta para o regresso dos meus incríveis. O estojo das canetas, o cabedal da pasta, os livros e os cadernos, o lápis afiado, o olho desafiado a coisas por saber.
Lembro-me daquele senhor no café. Sentado na mesa à direita. O médico que já não era médico, o doutor que ainda estudava como caloiro, eterno conselheiro gratuito entre as horas de palavras copiadas em cópias sempre novas de conhecer.
Até ao último dia entre os diagnósticos a todo o instante válidos em si mesmos, em mais ninguém necessariamente. Como o amor não depende das coisas de quem é amado, mas de quem ama, assim o saber não depende do texto ou do professorado, mas da vontade de aprender.
Os bancos de madeira, o ranger das tábuas por encerar, sentar-se perante o quadro imenso de universos por polir... Essa condição de aprendiz que está acima das tribos, das ciências, das modas, das gerações, das rupturas, dos tempos.
Conhecer, e sobretudo, fazê-lo independentemente, é a maior empresa a que é possível admitir-se.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Fatalidades

- Deixa lá, é o que tem de ser.
O que tem de ser resume-se então à forma mais ou menos mística de explicar a razão pela qual o universo não nos obedeceu. Há, assim, uma entidade supra-natural especialmente teimosa que surge de forma a manifestar o seu poder. Para justificar e suavizar a contrariedade, subtilmente expelimos um amargo de boca embrulhado com esse nome "o que tem de ser".
O que tem de ser é, por isso, para todos os efeitos, o gajo que manda nisto tudo. O gajo que cumpre a sua vontade mesmo que tudo façamos para fazer a nossa vontade prevalecer. O gajo que se satisfaz a si próprio em nome de nos fazer aprender qualquer coisa, ainda que já nos julguemos sabedores, ainda que nos escusemos do que tem a ensinar.
Agora entendo a amplitude da pré-determinação - mesmo que não se faça nada ou que não se deseje que algo ou alguém seja assim, ele pode sempre ser o que tem de ser. Agora entendo por que esperam todos os que nada fazem, os que se alienam constantemente de buscar seja o que for - esperam pacientemente pela desresponsabilização que lhes confere o Sr. O que tem de ser.
Mas cada um também tem de ser.
E como se não bastassem as condições climatéricas, a genética, os caprichos alheios e outras determinantes mais, ainda temos de fazer face aos presságios, às coincidências, ao destino. Ao que tem de ser.
Entendo, em todo o caso, que por via do acaso, cada caso é um caso, e é possível que todos possamos ter ser tudo o que temos.
Recordando ainda que as determinações e inevitabilidades em geral envolvem também as maravilhosas e estimulantes surpresas com que nos brinda pontualmente o intrigante e afamado Senhor em questão.
Sendo que, para que não restem dúvidas, seja claro que o fado não nos reduz o livre arbítrio, apenas se impõe como um gajo teimoso, lembrando que este não é o único factor em jogo.
Havendo portanto um rasgo no qual ensinar e aprender, mandar e obedecer, possam ser uma dança de forças em que cada um faça o que tem de fazer.
Rumo a esse sujeito com quem temos encontro marcado, perto e a preceito.
No lugar desenhado pelas nossas cores e talvez pintado pelas nossas dores e no fim assinado pelo que tem de ser.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

In(Dependências)

E regresso à minha secretária arrumada com a vida ainda por arrumar. Antes assim.
Da máquina melindrosa do dia-a-dia mecânico e cinzento não sobrou nada. Há até algum desconforto em ter esquecido coisas básicas que costumam ser sempre lembradas na dinâmica de todas as anteriores manhãs.
Compreendo então que, apesar de continuamente nos empurrarem para esse motor rotineiro, em que o corpo faz uso de substâncias, coisas, hábitos, relações, vícios, dogmas e esquemas complexos de afectos que aparentemente nos suportam, o espírito aproveita deliberamente qualquer rasgo de mudança para se desfazer de tudo o que o desfaz genuinamente.
Esquecer a trama de deveres e obrigações, rebelando-se por uma nova causa.
Faço de conta que vou trabalhar apenas hoje, que amanhã logo se vê... - assim se educa a mente para um novo ciclo de desiducação.
Como os hábitos impostos são os mais fáceis de perder...! Como se os vícios voluntários fossem a rebeldia maior de se enclausurar a si próprio...
Sentada na cadeira, as costas começam a recordar lentamente o que as amolenta...
A rotina orquestrada parece agora um jogo longínquo, sem o qual tudo funciona igualmente bem. Estranhamente bem.
E a mensagem conta simetricamente para a ruptura amigável ou litigiosa...
Horrível entender como a dinâmica dos hábitos é volátil, sobrevivendo a todo o tipo de ausências com a naturalidade de quem prossegue igual, para o bem e para o mal.
Como continuamos a andar ainda que nos falte um bocado... faz pensar que talvez esses bocados de nós de que julgamos ser donos não sejam nunca mais do que apêndices dispensáveis de que podemos sempre prescindir.
Por tudo isto me convenço de que as melhores ferramentas da vida são sempre aquelas que nos destituem dos reinos de que não somos senhores, despojando-nos de falsas próteses, lembrando continuamente a constituição original do tronco solitário e singular.
Antes isso do que o sedimentar de impérios circundantes, tronos alheios sem os quais afinal, em caso de derrocada, passamos tão bem.
E inicio a labuta de mais um dia, certa de que não perderei a frescura necessária para resvalar para um outro cenário, assim que o tempo e a memória me facultem os instrumentos necessários para deixar ir os hábitos de hoje e abrir a porta aos sonhos de amanhã.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

São Coisas

Regresso ao cenário das férias da minha infância e agora já não há quem decida por mim aonde ir, embora eu me obrigue, ainda assim, a revisitar os sítios onde passava pela mão e que agora, pelo próprio pé, devo cumprimentar como manda a educação.
Já não sinto o nó na garganta de estar longe e presa, noto agora o aperto de estar de férias e ir para tão perto, sendo livre.
O restaurante dos melhores bifes é agora um bar para putos quezilentos. E até o cone de bolacha daquela maravilhosa gelataria tem um sabor diferente. Um aroma a canela. Os tempos passam, de facto. Tudo muda. Mas por que raio se coloca um aroma a canela num cone de bolacha que sempre abraçou as melhores bolas de gelado da cidade, isso não entendo. Não admito que coloquem canela ou outros sabores nas memórias da minha infância.
As ruas transformam-se em passarelas movimentadas de modelos mais ou menos amadores, de predadores, de presas, de famílias felizes, de pedaços de famílias, enfim, de visitantes bronzeados em geral. Os cheiros dos perfumes que só temos tempo de saber usar quando estamos livres de tempo e que só sabemos cheirar quando esse tempo nos liberta. O aroma do livre arbítrio a vaguear.
Por que não nos deitamos cedo?
Estou certa de que mais vezes me obrigarei a dissertar sobre a resposta a esta pergunta. Ainda que coexistindo com a realidade descartável em que reinará brevemente a trilogia "beber uma, fumar uma, mandar uma", tenho a teimosia de achar por bem descodificar os meandros da equação de que resulta inevitavelmente o facto de ser sempre cedo demais para terminar o dia de hoje e tarde demais para começar fresquinha o dia de amanhã.
O mistério que envolve as pessoas com a madrugada silenciosa onde há sempre algo mais a partilhar, a viver, onde há sempre algo mais para acabar, entre um último chá quente para beber.
Tenho vindo a contar as horas a fim de entender o limite do tempo do dia que possa realmente sorver, entre as ausências de limites que envolvem as mudanças dos tempos, cujas horas nesta altura já não posso conter.
Não sei se isto é uma adolescência tardia ou uma velhice precoce... mas assim este rumo aparentemente despropositado possa enfim ter a cadência perfeita.

sábado, 15 de agosto de 2009

Feitio

Não é defeito, é feitio, é maneira de ser.
É imperfeito, sim, nada está feito, está tudo por fazer.
Procurar um feito entre material contrafeito à espera de poder novos feitos erguer.
Mas no caminho sinuoso desse Senhor poderoso chamado Perfeito, todo o achado, aberto ou fechado, parece defeituoso...
E o ar que corre fica rarefeito entre um e outro sopro que provoca o tal efeito.
Entre um e outro sopro, feitos um com o outro, tudo parece desfeito...
Para quebrar esse feitiço vou fazer um esquiço que desfaça o enguiço.
Para todos os efeitos, tamanha empreitada tem de exigir isso!
Sair do banho-maria e fazer um percurso apetecível mais ou menos bem feito, com um desenho visível, um quadro minucioso que seja tão saboroso como um doce enfeitado em confeitaria.
Feito do efeito mais ou menos perfeito que vence o desafio, num lugar de afeições onde todo o defeito é apenas feitio.

domingo, 2 de agosto de 2009

Bilhetes

E guardo o bilhete com o teu nome e o teu número de telefone no volume amassado de papéis que se amontoam no compartimento da carteira especialmente destinado às coisas inúteis.
Lá fica entre bilhetes de ida ou de volta, cartões de restaurantes agradáveis e papéis de movimentos desagradáveis como levantamentos e outras contas por rasgar.
Lá fica entre bilhetes tirados em bilheteiras e outros papéis que já não esperam lotaria, que já não se podem remeter a uma tômbola, aguardando qualquer prémio a sortear.
Lá fica entre a tralha que já serviu para alguma coisa, que é de toda a forma testemunha de qualquer coisa, mas que já não tem serventia a assinalar.
A aguardar que um outro bilhete calado, casual e descomprometido possa desarrumar a carteira e fazê-la esvaziar-se de toda a tralha inútil, em que no volume amassado de papéis que se amontoam o teu bilhete não terá qualquer importância.
Esse outro bilhete não poderá ser adquirido em nenhuma bilheteira e a sua sorte não carecerá de qualquer tômbola ou sorteio.
Mas será destinado a outro fim que não o das coisas inúteis, permanecendo enquanto a vida se amontoa de uma nova papelada por rasgar.
E guardo o bilhete com o teu nome e o teu número de telefone à espera de já não precisar.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Fronteira

Sentada entre as quatro paredes do carro, com a embraiagem em espera, mãos prontas a operar assim que surja o verde.
Olho em frente e atravesso a fronteira.
Vejo os carros a suceder-se num bailado atordoado, quase cómico, de pequenos andarilhos irrequietos, transportando as mais compenetradas figuras de todos os tamanhos e feitios.
Após o colectivo vem o meu verde e com ele o meu solo no embaraçoso espectáculo.
Deste lado da fronteira sei o ridículo a que nos sujeitamos.
Significado flagrante de uma insatisfação e insegurança quase doentia de não se ver suficientemente válido nas próprias pernas para chegar onde quiser, de tal forma ser necessário o servil motor para transportar. No fluxo indecoroso onde 100 rodas iguais num único sentido substituem 50 pés diferentes com caminhos obtusos.
E pergunto de forma recorrente por que razão há sempre uma fronteira entre o comprimento das pernas e o tamanho do local onde se pensa chegar.
Por que razão haveria de haver uma razão nisto tudo...
Aquela razão que vive no ponto que compõe a fronteira entre o que está e o que devia estar, entre o que se tem e o que se preferia ter, irremediavelmente mais perto daquele que se é do que desse outro que se sonha ser.
Tonturas das lutas dos podres e dos poderes, passa-se mais tempo a trabalhar para o que não se consegue do que a conseguir o trabalho que lhe cabe.
Mais tempo em torno da semente dos frutos de outra época do que dos galhos carregados de peças por colher.
Nesta fronteira de ramos, folhas e recursos onde o tempo não pára de correr.
Sigo a escrever sobre esse lugar onde nenhuma palavra ou máquina pode funcionar, vivendo do lado da linha onde não é suposto estar.
E nestes momentos sinto-me como que sentada entre as quatro paredes do carro, esquecida de que sei andar, esperando o verde, para arrancar.

domingo, 19 de julho de 2009

What a silly thing to say...

Chamam-lhe então, a título de comentário pseudo-intelectual, a silly season.
Só nestes parâmetros se compreenderia a afirmação, dado que não será necessário haver algo mais a esperar do que chegar a época por que todos esperam.
Só nestas condições se chamaria silly, por nada acontecer, ao período em que nada mais se improvisa, porque tudo acontece.
Senão vejamos.
Começa quando o final da tarde se estende até nunca mais acabar, havendo tempo para sanar todas as dores e tensões, antes da noite chegar. Há tempo para o cafezinho que se andava para marcar já lá vão 15 dias e para os passeios que muitas pernas andavam a pedir já lá vai mais de 1 ano. Há tempo para fazer esvoaçar os vestidos de tecidos coloridos há vários meses enclausurados no armário, a aguardar. Há tempo para que os pés prisioneiros dos sapatos se possam ver agraciados por uma liberdade condicional. Há tempo para aparecer nas esplanadas, nos concertos, nas churrascadas, para fazer acertos de contas com o mar.
Nesses fins de tarde corre por vezes uma brisa que quase se poderia confundir com frio. E a pele já habituada a suar vê-se invadida de uma espécie de espirro, subliminar. Sabe bem nesses momentos poder optar por ir ou não ir buscar um agasalho. Sabe bem saber que esse vento refresca mas não pode gelar. Sabe bem esta imunidade contra as fúrias naturais e hostilidades em geral num período em que nos dão tréguas.
Os flagrantes políticos, as mágoas da humanidade, os dramas noticiosos, as chuvas mananciais... As meias de lã, os lençóis de flanela, as botas de borracha, a lama por lavar, o tempo medido, as escuridão precoce... tudo fica numa espécie de hibernação... que não deixa saudades...
A vida reveste-se de uma plenitude mais saudável, particular, uma amplitude de serenidade incomparavelmente mais agradável, singular.
Tudo mais do que isto é um esquema entediante e duvidoso, inventado durante o resto do ano, para nos alienar.
O que é silly é resmungar o ano inteiro pelas férias, vitimizar-se de outras misérias mais, e depois mergulhar numa multidão incomodada, a correr, e aproveitar para comprar um livro de palavras cruzadas, para se entreter...

domingo, 12 de julho de 2009

Pólo a Pular

E reduz-se a inquietude da forma e do conteúdo, do fado e da virtude, aos dois monstros do pecado que repousam no íntimo do ser educado.
Se está fresco ou abafado, largo ou puxado, solto ou amarrado, branco ou torrado, perto ou apartado, aberto ou fechado, doente ou curado, ferido ou cicatrizado, amante ou amado.
Certo ou errado.
E já não se pode correr nesta linha simétrica, sem sombra de astúcia geométrica ou ponta de genialidade estética a apreciar.
Falta respirar no chão dos atalhos, a suar dos seus trabalhos, a entrar nos baralhos de outras cartas para jogar.
Falta mergulhar num outro edifício de cariz mais propício onde o custo/benefício seja melhor de pesar.
E então a satisfação de correr com paixão sem nenhum senão a temer, de buscar e emoção num qualquer garrafão onde se possa beber, trará a razão da perfeita ilusão que é continuar a escolher.... entre duas facções que já não têm pregões de que se valer...
O vazio pode ser um lugar preenchido em vez de um espaço por encher.
De lá é possível olhar sem um qualquer cisco que impeça de ver.
Quando o escuro invadir o céu e não houver cólo onde sentar, vou imaginar que também a estrela abandona o pólo e sai por aí, a pular.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Ana Rute is coming to town

Tudo começa com um sussurro teimoso que chama repetidamente para o que tem de ser. E acaba com o crédito que é necessário dar.
O percurso faz-se por entre o riso sedutor dos atractivos e o tremer das pernas entre verdes medos e interrogações.
O percurso faz-se a sós com a imensa equipa de bastidores.
O percurso faz-se com a convicção de que será certo tudo o que possa haver de incerto ou mesmo de errado.
O território faz do estreante um estrangeiro que se perde no caminho para a rua onde mora.
Mas a casa já lhe pertence antes de ser sua, escolhe os que a habitam com a precisão de um sábio, cruza vidas e tem vontade própria, como as varinhas que indicam o seu mago.
O espaço é sempre anárquico e hostil para um estranho, um esquema organizativo complexo, profundo e perfeito para um velho conhecido. Um quadro sinuoso de quem é atento entre quem é distraído.
Para o infinito vira-se a bandeja colossal, o palco a que assistem absortos mil rostos de fachadas expressivas, olhares de centenas de luzinhas de presença, a plateia ideal para todo o tipo de espectáculos, sejam diálogos, monólogos ou silêncios.
E avança como um homem para uma mulher - convicto e seguro, apesar de na verdade desconhecer absolutamente onde se está a meter.
Acertar é uma possibilidade, não uma imposição.
Subitamente tudo faz sentido.
Já não importa se é chegar ou partir.
Ir não é despedida, é reencontro.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Ser razoável


"- Queria ver um pôr-do-sol... Dai-me esse prazer... Ordenai ao Sol que se ponha...
- Se ordenasse a um general que voasse de flor em flor como uma borboleta, ou que escrevesse uma tragédia, ou que se transformasse em ave marinha, e se o general não executasse a ordem recebida quem, eu ou ele, teria a culpa?
- Serieis vós. - disse resolutamente o Principezinho.
- Exacto. É necessário exigir de cada um aquilo que cada um pode dar. - continuou o rei. A autoridade repousa, antes de mais, sobre a razão. Se ordenares ao teu povo que se lance ao mar, ele fará a revolução. Tenho o direito de exigir obediência porque as minhas ordens são razoáveis.
- Então o meu pôr-do-sol? - lembrou o Principezinho, que nunca esquecia uma pergunta depois de a ter feito.
- Hás-de ter o teu pôr-do-sol. Vou exigi-lo. Mas esperarei, dada a minha ciência de governo, que as condições sejam favoráveis."

Antoine de Saint-Exupéry

...
Num planeta curioso e distante, onde o Sol se ergue e se põe repetidamente, servo absoluto de uma qualquer ordem que se desconhece, mora uma única majestade inexorável, posta em seu trono solitário e resoluto, perante o imenso universo onde cintilam possibilidades.
Mora ainda uma única súbdita, incansável e obediente subalterna do Regime Real da Razão.
Por lá passará também, pontualmente, um Principezinho, a questionar cada premissa do feudo instituído... Com subtileza, a rebelar a cativa, a melindrar a realeza...
Ver um pôr-do-sol? Huuuummmm... Não sei. Temo vagamente não ser possível.
Não se pode ser general, e borboleta, e ave marinha... Não se pode pedir a um peixe que combata, nem que voe como uma andorinha...
E no Reino abastado em erupção, há uma raínha que já não consegue mandar e uma súbdita que não quer ter razão.
Mas não se pode pedir a uma borboleta que nade, que escreva tragédias ou que vista farda...
Cada um é o que tem de ser. E o que tem de ser não tarda.
A majestade regressa ao seu trono com determinação. Ao seu lado terá a súbdita, que sabe corresponder de forma amável.
Quanto ao Principezinho e ao seu pôr-do-sol...
Sempre que o planeta continuar a mexer, em busca dessa ciência de ser razoável, o universo inteiro esperará para ver a envolvência do dia em que será favorável.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Heal the world, make it a better place

E depois dos escândalos, das excentricidades, da opulência, do refúgio... depois de o ter considerado de forma pejorativa como o homem mais racista do mundo... agora, depois disto tudo, quando a lenda não passa efectivamente disso mesmo, quando toda a gente aproveita para rogar que era bem feito para não se ter maltratado tanto... eu só me consigo lembrar destes versos que aprendi um dia adolescente numa aula de Inglês...
Heal the world
Make it a better place
For and for me
And the entire human race
There are people dying
If you care enough for the living
Make a better place for you and for me
Agora que uma boa parte do mundo está ainda acordado a acompanhar as notícias, enquanto uma parte menos informada ressona a todo o vapor, eu consigo compreender as lágrimas que se vão chorar, eu própria, surpreendentemente, me emociono ao constactar como é possível alguém que goste tão pouco de si próprio poder, ainda assim, dar tanto aos outros.
O ridículo do racismo que sempre lhe atribuí é hoje eu estar acordada até esta hora a pensar que, de facto, não havia qualquer hipocrisia nesse racismo, apenas alguma tristeza, por verificar, como o sei agora, que a única maneira de ser igual nesta vida ainda é ser branco também.
Tudo o resto é uma forma simpática de achar jeitosos os talentos de quem tem um espírito mais torrado.
Deste profundo amor pelos outros, na procura de um reconhecimento... (meu Deus, como toda a gente, como eu própria já não ansiei tantas vezes ser realmente vista) deste profundo talento para se dar, veio a obcessão de adoecer e o intuito superior de tratar...
Quando na imensa mansão alguém estava a morrer... compareceram todos os fãs, todos os sucessos, todo o amanhecer mais claro e mais longe de si.
Cá fora, ficou o que havia a salvar.
Depois de dormir um bocadinho... vou comprar um cd e treinar uns passos daqueles, para recordar.
Se depois ainda tiver tempo, sei que há um mundo para curar...

terça-feira, 23 de junho de 2009

Pronúncia do Norte


Partida para o Porto na busca da missão interminada do mestre, a saber se é génio ou vagabundo.
Na jornada em que nunca me esqueci de ti, fui no caminho que atravessa o rio, pelo velho casario, até ao mar. Encontro em ânsias marcado, voando como o Jardel entre os centrais, calçada escorregadia até ao Rivoli.
Acordam as marionetas do mestre, quebrando o abismo vagabundo.
Rindo entre sardinhas, o destino é um cavaleiro-andante, um S. João das francesinhas, anfitrião bem-vindo e aconchegante.
A gaivota atravessa a rua com calma, não há fado atrasado que possa fintar o que está marcado.
As marionetas com mestria acordam o génio e diluem o vagabundo.
Mais tarde, enquanto se elevam no ar palavras vis, abraços doces reduzem malícia e criam laços, as pontes que querem unir duas margens sob o olhar atento do leito que tem como certo chegar ao mar.
E o mestre vagabundo já não tem génio para manobrar as marionetas...
Há muitas ondas para as mãos que habilmente podem mexer - acariciar e unir, bater ou apartar, convidar e anuir, sofrer ou enxugar.
Maõs de oiro sabem prender e, na hora certa, soltar.
E assim o segredo embrulhado em seda desvela o mestre e ilumina em tarde leda o amado génio vagabundo.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

A Thousand Words




Uma curta genial que diz o que mil palavras não podem descrever.
Que diz o que eu quero dizer quando menciono o improvável.
O que pode acontecer quando uma pessoa demasiado atenta se distrai.
O que deve acontecer quando uma pessoa demasiado distraída presta atenção.
Obrigada pela dica, miúdo.

terça-feira, 16 de junho de 2009

It takes two to...

Porque tantas vezes se desperdiçam pessoas para fazer vez de bengala, de escudo, de biombo, de galardão... como é bom saber estar só. Sem ninguém para se mostrar ou esconder, carregando o próprio peso, voando pelas próprias asas.
Porque tantas vezes só assim se descobre tudo o que se desconhece e se desvela o desconhecido com que dantes se mascarava.
Porque é bom, tão bom estar assim, tão pacífico e confortável, tão cómodo e silencioso que melhor mesmo só se...
Aparecer alguém.
Porque para certas coisas são precisos dois.
Porque para muitas coisas são mesmo necessários dois.
Na dança como na vida, a parelha sinuosa em que ninguém pode ser melhor, em que ninguém se sobrepõe.
Na química como na vida, dois átomos que no preciso minucioso comprimento de ligação formam uma susbstância superior à soma das partes.
Nas cerejas como na vida, o par que é comido de uma só vez, mais saboroso quando antes de mão dada podia ser um brinco em qualquer orelha.
Na dupla há dinâmica, acção, construção, recriação, rendição...
Troca de fluídos para os mais físicos, troca de conhecimento para os mais intelectuais, troca de experiências para os mais aventureiros, troca de energia para os mais espirituais.
Pelo plural, pelo binómio, se sorri para o despertador.
E músicas ganham novas histórias, há mais vida para contar, segredos incógnitos de uma conspiração improvável e o nascimento de uma nova existência que partilha o céu estrelado e o amanhecer, que comunga da meta para onde correr.
Areias são pós de perlimpimpim a saltitar na grama de um jardim, o forte em declínio um gelado de fruta à espera de derreter, o paredão não é um abismo mas sim um levitar, um chá parado à espera de se mexer.
Bénard da Costa diria que a arte é uma compensação para o terror que a vida inspira.
Poético, hein?
Eu acrescentaria: o Amor também.

domingo, 14 de junho de 2009

Santos


Marcham os bairros na Avenida, enquanto a noite se faz de outras passadas.
A multidão prolifera pelas ruas como um bando de sardinhas desarrumadas.
Na sombra da alçada colorida, entra o fumo e o eco popularucho da euforia.
Na romaria há manjericos com fartura, quadras mais ou menos bem rimadas e um ou outro ego mais gorducho.
As luzinhas indicam o caminho entre meia dúzia de ruelas mal iluminadas.
Mal por mal prefiro as gargalhadas bem dadas e o trilho abençoado das ginginhas.
Entre prantos e mantos vão caindo pelos cantos... os Santos.

domingo, 7 de junho de 2009

Persiste


Fixe atentamente esta imagem.
Foi aqui que vi pela última vez um testemuho público, concreto, literal, de que O Amor Existe.
Mesmo para os que desconhecem os alfabetos da alma, estava escrito na língua de Camões (que os conhecia a todos).
A cabana à beira-mar plantada na praia de Carcavelos foi agora pintada de branco.
Certamente quem não ouve a mesma canção cobriu de cal a mensagem inscrita.
Aparentemente, ali O Amor Já Não Existe.
A mensagem pode surgir sob as mais variadas formas e linguagens, para as quais existem todo o tipo de analfabetos.
A mensagem pode revestir-se de todas as tintas, em várias camadas, sendo que é difícil vê-la, lê-la. Toda a parede branca pode contê-la...
Olhe atentamente a imagem.
Se um dia, passeando distraído, esta brisa for até si, se o fizer sorrir, se o cobrir com esta luz quente e solarenga, e o fizer sentir-se inscrito destas palavras esplanadas ao mundo, saiba que a poderosa verdade tomou conta de si.
Não me deixe ficar mais assim triste, escreva-me depressa a confirmar, veja através da tinta e tenha como certo, ele persiste.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Elogio do Elogio

Não há qualquer ciência na sensação de prazer que é receber um elogio; o mesmo não se pode dizer da cedência de o tecer. Basta pensar que elogiar é sempre saber dar, sem a mácula horrenda de se frustrar.
Porque tantas vezes se abre a boca para vomitar coisas sem consequência, sem fundo, sem construção, sem paladar, tantas vezes fútil, tantas vezes inútil.
Porque tantas vezes se pensa bem de algo ou de alguém, e falta generosidade, e falta oportunidade para deixar sair.
Porque tantas vezes não se deixa sair nada e porque outras vezes é tanta massada que em vez da boca fechada ainda há força para arrotar pedrada.
É tanta a nobreza de ser seguro, de ser maduro. Em vez de ser o que inveja, que despreza.
Quando alguém pode transformar aquele que seria mais um dia numa imensa alegria, merece saber que já não podia ser mais um entre a maioria.
Quando sinto que já não consinto ser igual, digo para mim - não mais minto! - saio por aí como que ao quintal e procuro alimentar mais um ego faminto.
E agora que toda a rima começa a ficar saturada, concluo - mais vale não ter medo de deixar ficar uma pessoa inchada do que moer a azia de ficar calada.

domingo, 31 de maio de 2009

Criaturas Superiores

"O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais depressa ainda, as afeições violentas. A maioria da gente, porque é estúpida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contraiu o hábito de se sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As criaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade dessa ilusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por ele a estima, ou a gratidão, que ele deixou.
Estas coisas fazem sofrer, mas o sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais do que partes da vida?"
Quando Fernando Pessoa, correndo o ano de 1920, escreveu a Ofelinha a confirmação da despedida, já saberia decerto a tormenta do desengano que é o fim do amor. Como conheceria também o sofrimento de sobreviver a esse desengano, efémero de facto, como tudo, como outras coisas mais.
Não há muito, aliás, não há nada a acrescentar às palavras de Pessoa que, também neste capítulo, teve o génio de atribuir a dose certa às palavras. Sem falsas intenções opôs a gente estúpida às criaturas superiores, que por vezes ninguém entende, que por vezes ninguém ousa entender, cuja sensibilidade ninguém respeita, cuja clarividência, sobretudo se misturada com a solidão, é um veneno, um veneno que ninguém imagina.
E, no entanto, por fim, um veneno deliberado, arbitrário, de quem não poderia, apesar de tudo, ser capaz de tomar um rumo diferente.
Fica também, em momentos de tristeza, um secreto desejo de que o desengano se desfaça, que regresse novamente a ilusão e a vida possa aliviar esse peso.
...
Não será esse o caminho...
...
Mas quando nos cruzamos com quem ignora esta verdade, quem no seu sono profundo desdenha da frágil-forte volátil e mínima posição em que estamos, nem se sabe o que desejar - que permaneçam nessa doce e invejável armação ou que, num dia chuvoso e triste, sem escudo nem elmo, venham juntar-se a nós.
A todas as Ofelinhas, mas sobretudo a todos os Fernandos desta vida.
"Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras afeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil."

domingo, 24 de maio de 2009

Parentesco

Li, de raspão, de um autor conhecido qualquer, que me perdoe a não citação... diz ele que devemos ser pais do futuro e não filhos do passado.
E ando eu aqui a partir pedra há alguns meses para ver se consigo transformar a filha revoltada numa Mãe efectivamente capaz de dar à luz uma vida pacífica...
Informaria o autor em questão, que tanto jeito teve em parir esta pérola (que, a ser concretizável, cessaria muitas guerras) que a coexistência de pais e filhos num mesmo universo, e sobretudo numa mesma pessoa, gera um conflito inesgotável, sem princípio nem fim, que é responsável por continuamente produzir as gerações da história e também as gerações de uma mesma vida.
Mesmo quando se é Pai nunca se deixa de ser filho e por isso o pai do futuro é sempre um produto do filho do passado.
E diz o ditado, e eu sei-o bem, que mesmo enquanto não se tem filhos, tem-se sarilhos também.
Quando eu escrevo neste doce quadro lilás, eu sou a mãe que manda arrumar o quarto (o quarto do tempo certamente) mas nesse quarto sou ainda a adolescente com borbulhas.
Reformularia para o autor em questão, dada a impossibilidade da nota que generosamente deixou, que não devemos antes ser prisioneiros do passado porque, se o formos, seremos assim carcereiros do futuro.
Para o efeito, será necessário perder o medo dos falsos fantasmas que deixámos algures e antes ir buscar a herança, a fortuna suada a transportar para nenhures.
Amadurecer, adubar, semear para colher, fertilizar.
Não tratar o filho como enteado, ser Pai e não padrasto, não olhar o tempo passado como uma perda de tempo mas antes como um investimento... a fundo perdido.
Enquanto se procuram respostas, vem sempre um inteligente a dizer "atira para trás das costas!"... ainda bem que, para fazer face comentário grotesco, o ilustre desconhecido não ignora o parentesco.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Polido Valente

Que bom que aparecem pessoas que odeio, que detesto, que bom que depois as veja, que me vejam e que as ame, que as adore.
Que bom que me dê aos outros, e que seja um desperdício, e que não valha a pena, e que seja tarde demais para eles mas ainda seja tempo para mim.
Que bom que não preciso de estar todos os dias feliz, nem todos os dias bonita, nem todos os dias limpa.
Que bom que nem sempre faz calor, e que nesses dias pode haver um abraço quente, e pode não haver e pode saber bem o frio.
Ainda bem que tropeçamos nas bestas, e tropeçamos outra vez e tropeçamos muitas vezes, e caímos sempre, e um dia damos um pontapé e outro dia levamos um e um dia já não caímos mas podemos sempre cair.
E que benditas sejam as lágrimas e as conversas e os telefonemas e os presentes que deixamos na sanita para quem não nos quer deixar ter uma vida aliviada.
E ainda bem que afinal pode acontecer o pior e pode haver continuação, e afinal não morremos e afinal sobrevivemos e afinal há gente boa.
E posso dizer asneiras e posso cheirar mal, e posso dar erros e posso ser imperfeita, e posso falhar, e posso viver tão bem assim.
...
E felizmente que, mesmo assim, sorrio, dou os bons dias, sei agradecer e tomo banho.
E estou aqui. E vou sendo melhor.

domingo, 17 de maio de 2009

Cartão de Aniversário

Na imagem do panfleto de papel brilhante, impressa a cores mais ou menos difusas, mora vida nova e vida já gasta, lê-se a palavra procedente e a palavra cessante, pela ferida aberta da redoma perdida, a figura da miúda cada vez mais literalmente saída da casca.
No interior de lustro vazio cabem as ânsias do que podia ter sido e do que pode ser, cabe tudo o que se pode e não pode ler.
Cabe o que se perdeu e quem se perdeu, a mágoa chorada e por chorar, tudo o que se podia dar e não se deu.
Cabe o que se ganhou e quem se ganhou, a saudade imensa do que já passou com a força nova do caminho por andar, de prosseguir e arrumar o que voou.
Cabem as palavras que não foram ditas, a imponência cruel do orgulho e outras coisas pequenitas que sufocam e conduzem pontualmente à dependência.
Cabem os momentos que não foram vividos e também os que se escolheria não viver, os dias espremidos e também as gotas por sorver.
Cabe o passado e o futuro, a partida e a meta, largada e fugida, a seta que aponta o caminho em que perduro.
Cabem as velas já frias e todas as outras em chama, a fogueira por apagar na lida de quem ama.
Cabe o primeiro telefonema e a última lembrança, a maior surpresa e a pior desilusão, os desejos por pedir e os votos por ouvir, a canção e a esperança no que está para vir.
Cabem os silêncios, as lágrimas, as risadas a dar, as pessoas que chegaram e os espaços em branco de quem já não vem assinar.
Fecha-se o envelope sem remetente nem destinatário, correspondência pendente de cariz arbitrário.
A vida expedida sem marco nem selo, em que o bloco de gelo é já pedra partida.
E, no entanto, é só um pedaço de cartão por riscar, para guardar numa caixa empoeirada à espera de se estragar.

domingo, 10 de maio de 2009

Da minha ponta à tua submersão

Não foi à toa que Freud lhe quis chamar iceberg. A imagem do imenso e luzidio bloco de gelo flutuante a que na máxima inconsciência, chamamos consciência.
O monstro petrificado dos mares longínquos e desertos, o sádico da natureza que atraiçoa navios inafundáveis acabados de inaugurar. A interminável casa de horrores onde habitam impávidos os fantasmas de cada um.
Do ser humano que somos mostramos apenas a ponta, para quem a saiba ver. Do ser humano que nos está defronte vemos apenas a ponta também. O pequeno extremo ensolarado que pontualmente ousamos fazer derreter.
Mas o monstro jamais se dissolve.
Nas catacumbas sangram gelidamente as feridas, rosnam surdas as feras de uma história sem princípio nem fim. Escultura das correntes violentas do oceano sem cheiro de água doce.
Na métrica, matemática ou aritmética escondem-se os números da proporção individual entre a ponta e a submersão, entre a tona e a profundeza, o que se mostra e o que se esconde, o que se diz e o que se cala.
Do ser humano que sou nem a ponta conheço, como posso adivinhar a tua submersão?
...
Porque na tumultuosa vertigem da correnteza, entre as tempestades, por entre as ondas violentas e os braços de todos os Adamastores, no meio das aves que gritam e as bebedeiras de azul, pode haver um ou outro rasgo de luz.
Entre a penumbra um pequenino audacioso raio a iluminar o infinito de imperfeição desse envergonhado e irremediado monstro que julga não ter salvação.
Nesse rasgo, numa ínfima fracção de tempo, do ser humano que sou, tu vislumbras o que desconheço e eu adivinho o teu improvável. Nesse engano, nesse equívoco mútuo, vamos da minha ponta à tua submersão.
Terminado o eclipse, de novo o escuro sádico e frio, ao sabor da corrente escultora.
Não será muito mais do que isto a vida nubolosa que nos habita, senão este vago oceano onde derivam blocos de gelo profundo, um silencioso desfilar de ausências e feridas por sarar, onde o meticuloso conhecimento de senso comum é o fait divers das pontas solarengas que escondem um poço de perguntas sem resposta.
Uma superfície onde as tímidas pontas abafam os seus monstros.
Na serenidade sádica onde dispontam por vezes parcos raios de luz.

domingo, 3 de maio de 2009

Soro Psicológico


Merece o destaque da mais lírica calinada terapêutica dos últimos tempos. Uma pérola literária das barbaridades que surgem em farmácias ou outros locais em que o cidadão comum é levado a incursar em palavreado técnico.
O cliente aborda o ajudante de serviço e pede cuidadosamente:
- Por favor, eu queria um frasco de soro psicológico.
À parte de toda a dissonância semântica, o cliente é, naturalmente, bem servido com o produto mais semelhante em stock, a garrafinha de soro fisiológico.
À parte de todas as considerações sobre a cognição dos cidadãos no que respeita a diferença entre a psicologia e a fisiologia, deixo o comentário:
- Que grande ideia, Sr. Consumidor!
Se os marketeers fizessem, de facto, auscultações profícuas aos utentes do serviço farmacêutico, já teriam, certamente, notado a carência do mercado generalizado para a venda deste produto. Uma novidade unânime para o ser humano universal, o soro psicológico seria um medicamento de venda livre para desinfecção de feridas de cariz sentimental, limpeza de cicatrizes e mossas da vida em específico e tratamento de almas sensíveis em geral.
Soro psicológico - o frasco mais lógico.
Soro psicológico multicolor - recupere o seu humor.
Soro psicológico intensivo - deixe esse ar depressivo.
(com jingle)
Enquanto ainda ninguém descobre esta pólvora vamos recorrendo ao comum banhinho relaxante, abraço analgésico e conselho antipirético. O amigos vão dando conta do recado com a sua prescrição tão leiga e despretenciosa, a família ajuda nas dosagens e, ainda assim, existem também pequenos bálsamos que ajudam, como um bom filme, um livro, um pôr-do-sol...
Infelizmente, ou não, nada disto é comprável nem embalado em frasco.
.........
Aliás, em frascos...
Bem, garrafas!
Sim, existe um outro soro, que, sim, de facto, também pode ser psicológico.
E também pode ajudar.
Para melhores resultados, aconselha-se a toma em longas noites, num brinde a várias mãos... à vida.
À nossa.

sábado, 25 de abril de 2009

Cravos Vivos

Ainda bem que é 25 de Abril. Ainda bem que, mesmo que com manhas o evitemos, o calendário exerce todos os anos a ditadura implacável de não nos poupar nenhum dos dias, nenhum de todos os dias previstos do tempo que tem que passar.
Não me refiro aos filmes que temos de ver passar na televisão sobre Salgueiro Maia (Deus o tenha em merecido descanso) nem me refiro às personagens que temos de ver em discursos estudados de cravo ao peito nem às outras personagens que, em casuais entrevistas de rua, não sabem bem explicar o motivo pelo qual é feriado.
Não me refiro sequer à quantidade de famílias cujo curso esta data mudou, há quem deva a vida a este dia do emblemático 74 e há ainda quem desejaria que nesse ano o Abril não tivesse tido um 25.
Não é a nada disso que me refiro.
Refiro-me ao som dos passos na gravilha do Grândola Vila Morena, ao frio da noite em Santarém nas faces corajosas, ao vermelho de vida dos cravos já cortados da terra.
Refiro-me a fazer com que a manhã seguinte não seja só mais uma manhã.
Refiro-me a todos os medos que nos cravam o peito quando, já de vida adormecida, lembramos o que é acordar uma Revolução.
Refiro-me a quantos damos no cravo e na ferradura, a quantos sapos bem verdes temos de engolir para um dia termos o vermelho de que se precisa para viver um 25 de Abril dentro de nós próprios.
Questiono-me quantos 25 de Abril será preciso provocar para que as mentes acordem para o que tem que ser.
Questiono-me quantos 25 de Abril será preciso provocar para poder ser o que quero ser.
E questiono-me se todos os 25 de Abril podem chegar para que a liberdade possa algum dia prevalecer.
Se todos os Zeca Afonso poderiam ditar a bucha dura e a razão que a sustém, se todos os Paulo de Carvalho poderiam ensinar a viver um depois do adeus.
Não me refiro ao banalizado e esquecido 25 de Abril de 74, perdido na mágoa do passado e no futuro das gerações.
Refiro-me aos cravos cortados da terra, aos cravos cravados no peito e que tantas vezes deixamos murchar.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Quanto tempo o tempo tem

E preciso eu de viver 23 anos para chegar, com algum grau de certeza, a esta brilhante conclusão: é tudo uma questão de tempo.
Todos temos um número infindável e mesmo inusitado, tremendo, audacioso, de coisas que gostaríamos de fazer nesta vida. Ou mesmo em outra. Não há limite. Contabilizando ainda tudo o queremos fazer e não sabemos, o que vamos tentar mas não vai prestar, e também a quantidade de vezes que vamos decidir mudar e desejar tudo outra vez, é possível, com uma álgebra melindrosa e susceptível, somar uma magnífica panóplia de experiências que, muito possivelmente, será impossível de reunir em tempo útil.
Poderíamos contratar vidas de aluguer para acabar o trabalhinho mas esse tempo já não seria o nosso.
De facto, a vida de cada um é irrepetível, única, insubstituível (se quisermos dizer assim), porque cada qual se arranja como pode para encaixar no relógio uma ínfima parte do que gostaria.
Escolher - tarefa maravilhosa e ingrata, fascinante e frustrante... Implica sempre perder alguma coisa, muitas coisas talvez, sem perder de vista o objectivo principal.
Há, de facto, coisas que fazem mais sentido do que outras mas não nos percamos do assunto, não falamos de sentido, falamos de tempo.
Oferecemos o nosso tempo aos que amamos, ao que nos dá prazer, a meia dúzia ou mesmo uma dúzia de ninguéns que também podemos vir a amar e que, esperamos nós, nos podem dar prazer. Passamos uma eternidade a gerir o amor, o prazer, para mostrar o nosso melhor e ser como somos. Oferecemos também tempo para que os outros nos mostrem o seu melhor, tempo para aprender a vê-los como são, ainda que, muitas vezes, pelo caminho, algumas destas ofertas nos possam, mais tarde, parecer uma perfeita perda de tempo...
Vendemos o nosso tempo no trabalho. Alguns fazem um bom negócio. Para outros pode ser uma grande roubalheira... Mas não falemos disso.
O pior mesmo é quando muitos de nós sentem que ninguém quer o seu tempo, nem dado nem vendido, resultado - a pior angústia de todos os tempos. Mas todo o mau tempo tem um dia seguinte, todas as tempestades têm uma bonança, todos os contra-tempos uma resolução.
Vou dizer outra coisa importante que descobri, há sempre alguém, algures, de tempos a tempos, que aguarda ansiosamente pelo nosso tempo, é a coisa mais preciosa que temos, portanto, sempre que surja a ocasião, deve arranjar-se sempre um bocadinho para essas pessoas.
O tempo de cada um nunca chega para dar a mão a todos os mendigos, matar a fome a todas as bocas, adoptar todos os cãezinhos abandonados... mas enfim.
Ainda assim qual o motivo pelo qual tanta gente quer ganhar o Euromilhões? É para que lhe sobre tempo para fazer o que gosta e também para poder fazer o que gosta sem levar tempo a trabalhar para lá chegar.
Infelizmente para muitos, nem o tempo todo chegaria.
Mas outros têm dificuldade em arranjar um tempinho para serem felizes.
Aqui fica contada a estória, espero que não vá fora de tempo, - é preciso ser feliz atempadamente.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Passas do Algarve

E ouço isto:
"Mas tu evoluíste como o caraças!"
E sou mesmo capaz de concordar.
O passado significa precisamente aquilo que já passou.
Passaram os dias de cabeça passada em que já tudo me passava pela cabeça.
Passou o desespero de só querer fazer um passe a quem chutasse para canto, passar a batata quente, ou mesmo até passar alguém a ferro.
Passadas estão as loucuras em que só me faltava querer dar umas passas em alguma substância esquisita que preenchesse o buraco que me trespassava.
E ficava passada com aquela angústia de quem tinha comido alguma coisa estragada... talvez fosse mesmo uma coisa mal-passada.
Até que talvez seja o dia de dar o passo seguinte, deixar a passada apressada e voltar ao ritmo de passeio, ver quem passa no paço.
Faltava entender que todo o tempo é uma passagem, que a vida é uma estação na qual somos passageiros.
Que quando chega o comboio, se tivermos passagem, é necessário entrar, antes que seja passada a hora.
Porque tudo é passageiro e até as passas da vida, mesmo depois de um impasse, passam.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

"Inocências"...

Lá fora a chuva cai... e cá dentro talvez também.
Dizem que sou uma inocente. Uma romântica.
Presumo, pelo tom, que seja um defeito, uma afirmação do prejuízo do valor.
Sim, de facto, sou mesmo.
Tenho a inocência de acreditar nos outros e esperar deles o melhor. Beneficiar a dúvida até surgir o pior. Tenho a inocência de esperar sempre conseguir. E o romantismo de crer alcançar. Tenho a inocência de não virar as costas e fugir. E o romantismo de ter sempre mais alguma coisa para dar. Sou a inocente que diz sempre "bom dia" e ainda espera resposta. Aquela que não perde de vista o cume enquanto trepa a encosta. Sou a romântica que não se importa de passar por parva perante os idiotas. E que ri em surdina desse imenso país vazio de que são patriotas.
Os outros ainda julgam que nos fazem infelizes com o seu desdém, que nos magoam com o chico-espertismo da treta. E olham-nos de cima para baixo quando na verdade, voamos ao alto da leve consciência, como um cometa. Não pedem desejos se vêem uma estrela cadente porque preferem o facilitismo da descrença e se afundam num espírito decadente. Inocentes...
E escrevo na época em que se recorda um homem bom, inocente, que pregaram a uma cruz.
Como ele, todos os inocentes e românticos têm a missão de ressuscitar.
Amanhã o Sol vai brilhar.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Equilíbrio

Um destes dias recordei em conversa um grande desafio da minha vida: depois de gatinhar, palrar, caminhar, falar, comer pela própria mão, ir à escolinha, etc.
A minha primeira e mais autêntica conquista de autonomia: aprender a andar de bicicleta.
Engraçado isto, mil anos depois dou por mim novamente a lutar para atingir o equilíbrio. A pedalar por esta vida que pontualmente nos rouba as duas pequeninas rodas traseiras.
E, sempre que isso acontece, lá vêm as tardes de primavera, a calma e a persistência, a ira e a desistência, o corpo a tremer entre os pedais e as pedras do caminho, as mãos calejadas a tentar dominar um guiador que, de momento, parece ter vontade própria.
É ver lágrimas, sorrisos, é ver joelhos e narizes esmurrados, é ver sangue e depois iosina, é ver feridas e depois crostas, e depois cicatrizes discretas, e depois novamente arranhões.
Vêm os pais e amigos, vizinhos e conhecidos a dizer que já está na altura de aprender, a oferecer capacetes, joelheiras e cotoveleiras, para que custe um pouco menos.
Mas às vezes tem de se arriscar a pele, arrancar sem medo, tentar sem rede, de cabelos ao vento, às vezes sem ninguém, numa busca solitária e desprotegida.
E assim, nesta imponente jornada, cada um pedala como pode. Cada qual tem o seu meio, o seu ritmo...
Há quem pedale com cestinho e campaínha, no tartan, em pista coberta. Há durões que fazem BTT. Há quem deslize penosamente sobre o asfalto tórrido e seco. Há quem saia em contra-relógio e chegue mesmo a ter camisola amarela. E há quem quem passe a vida inteira a tentar. E ainda quem nunca deixe o triciclo.
Seja qual for o caso, o importante é partir.
E confiar em quem diz que, vencido o desafio, nunca se esquece.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Antes de Chegar

Aceito o repto de uma amiga.
Enumerar 8 coisas que gostaria de fazer antes de morrer, antes de se findar o caminho, de estar tudo feito, de não haver rigorosamente mais nada a fazer.
É um desafio leve sobre um tema pesado. Sabe bem aligeirar grandes dramas, questões obtusas...
Mas não será já demasiado ligeiro este viver de todos os dias com planos de curto alcance minados de coisas práticas nas quais vamos enterrando o sentido do caminho?
Caberá em 8 tópicos tudo o que nos move, tudo o que nos evade... tudo o que matamos, tudo o que nos sobrevive?
Ou serão demais esses 8 itens para dizer uma coisa tão simples como: estou aqui para sonhar e espernear pelo que me acontece, e a pagar para ver o que me acontece, com todos os recursos que tenho e aqueles que vou ganhando, aconteça o que acontecer?
.......................................
Aqui vai:
1) Deixar muitas vezes que me façam sentir as pernas tremer.
2) Dançar as melhores músicas.
3) Espremer muitas noites até ser de manhã.
4) Encontrar o amante perfeito.
5) Percorrer a Europa de comboio sem comida de jeito nem banho que possa ter esse nome.
6) Ir a Moçambique colocar num frasquinho a vida à qual a minha família nunca pôde regressar.
7) Fazer qualquer coisa de verdadeiramente importante por alguém, que possa justificar este oxigénio todo que respiro.
8) Partilhar isto tudo com filhos e, se possível, netos, que dirão: "Que tipa porreira!".
..................................................................
Uff........ é uma responsabilidade enorme ter desejos, quer seja pela forma como procuramos concretizá-los, quer seja pela maneira como habilmente os transgredimos, porque tudo é dinâmico, trocam-nos as voltas, trocamos também as voltas e surgem novas metas, novos desejos a formular.
Por tudo isto, o compromisso deve ser editável, reformulável e, sobretudo, permeável...
Mas, ainda assim, deixo a sugestão.
Reflectir no que nos move, no que nos acorda, no que nos define...
Mesmo que seja só um rascunho sujo de borracha, ondulado pelas lágrimas secas, rasurado pela ira, suado pelo Amor e por tudo mais que viver constitui.
E, antes de chegar, sempre a sábia frase... "be careful what you wish for".

domingo, 29 de março de 2009

Como descrever?

"E dois corpos, já o disse, não carecem de mais do que da fugidia linguagem dos sussuros, dos beijos que eriçam a pele, dos arquejos que preparam a doce deflagração de um amplexo. O idioma topográfico da epiderme transpirada é o único que importa - o único que é preciso dominar quando não se trafica mais do que o amor. Que diferença faz se esses dois corpos não são capazes de se entender plenamente utilizando o vago código das palavras? Que importa a gramática de raiz latina quando duas bocas estão demasiado próximas para que qualquer vocábulo possa ser dito."
Manuel Jorge Marmelo
Nada a acrescentar.

sábado, 21 de março de 2009

Às escuras

Recentemente, recordei com um velho amigo um episódio paradigmático da minha adolescência.
Vinha mais cedo para casa (já não me recordo exactamente dos contornos) porque não havia luz na vila inteira, não sei bem, houve uma avaria demorada. No caminho perdi completamente a ideia daquilo e, por isso, quando cheguei em frente à casa da minha Avó, toquei repetidamente a campaínha, sem entender por que razão ninguém aparecia para me deixar entrar.
Engraçado isto, como em tantas outras ocasiões da vida, ninguém tinha culpa. Eu não me lembrei que tocar não resultaria e quem havia de abrir não poderia adivinhar a presença de alguém sem escutar o som. Quando não há luz, não adianta tocar às campaínhas, é um esforço desperdiçado, não existem condições para que se produza o barulho do tilintar estridente, ninguém vai ouvir, as portas não se vão abrir.
Todo o esterco físico é expelido e canalizado para o esgoto. Em caso de acidente é também absolutamente lavável. Já o lodo psicológico tem de ser assimilado pelo organismo cognitivo, lentamente e penosamente levedado, refinado, convertido em combustível para a vida - na melhor das hipóteses.
Quando se está às escuras não há outra saída, não há outra solução senão a imobilidade, a paciência... Aguardar que venha a luz.
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(e bater à porta?????!!!..............................................)

quinta-feira, 19 de março de 2009

Só para mim

Nestes dias o John Mayer pode ser qualquer alguém do centro comercial. Pode ser o sujeito da caixa que partilha um sorriso cúmplice pelo anterior cliente chato. Pode ser o bonitão que saiu às compras com a Mãe. Pode ser o dread envergonhado na loja de lingerie. Pode ser o intelectual teso que vasculha CDs na caixa das promoções. Ou até... ninguém.
A partir da entrada a inevitável metamorfose revela a super-mulher que sabe o que procura e a incontestável Sra. Dona das Pechinchas.
Todas as mulheres vivem várias primaveras. Para ser mais precisa, doze primaveras por ano. Doze momentos de glória em que, passadas as chuvas, novos dias vencerão.
Com o saco do miminho na mão esquerda, enquanto os proeminentes saltos altos marcam o ritmo nos corredores mil vezes palmilhados, ouve-se, longínquo, em sussuro, o John Mayer cantando o inflamável Your Body is a Wonderland...
Só para mim.

domingo, 15 de março de 2009

Andorinha

Com nome que já é em si uma espécie de diminutivo carinhoso para velhos parentes, chega para a reprodução a raínha dos dias quentes.
Chega com as flores, o pólen e os insectos do calor, os cheiros da Natureza, o pôr-do-sol que deliciosamente tarda e a estação do amor.
Penetra de preto e branco quando a paisagem se pinta de cor para lembrar que tudo se renova devagarinho. Por isso reitera o seu voto de liberdade mas também o compromisso com o ninho.
Como num poema, deixa em África a saudade de partir mas constroi nos beirais a alegria de voltar.
Diz o dito popular que mesmo que uma parta sem regresso, o ritual de todos os anos se mantém como um ciclo superior que sempre se repete. Como contava Alberto Caeiro, é esta a eternidade que o Universo promete.
Quem recorda Bordalo Pinheiro, lembra no abrigo da varanda, todos os dias do ano, que passadas as chuvas novas flores brotarão.
E, assim que a vemos voar, cremos nisso. Não?

sábado, 14 de março de 2009

Final Feliz...?

E questiono o que se procura num final feliz.
Usemos as novelas como barómetro, nada como um bom melodrama televisivo comercial.
Dantes, a protagonista ultrapassava imensas barreiras, esquemas e enganos, oportunistas e estigmas familiares até, no último episódio, casar com o príncipe - o amor da sua vida.
Neste momento, a protagonista cede aos esquemas e enganos, tropeça nos estigmas familiares e casa com o oportunista. Posteriormente, ultrapassa imensas barreiras e finalmente, no último episódio, fica com o príncipe - o amor da sua vida. (Depois tratam dos papéis, não interessa.)
Começa a haver até enredos em que o oportunista se transforma em príncipe, em que a protagonista conta já com o apoio dos filhos para avalizar o príncipe, etc. Não importa que haja casamento no final, um divórcio pode até ser bem-vindo para apimentar o argumento, mas subsiste um denominador comum - ultrapassam-se barreiras, existem sempre esquemas e enganos, estigmas familiares, e ela fica sempre com o amor da sua vida.
(Ou, pelo menos, aquele que seria o amor da sua vida até à data do final das gravações. Se a história continuasse... não sabemos porque, se calhar, finais há muitos... e muitos nunca são felizes.)
Voltamos à história do caminho. Um final feliz será quando alguém encontra um caminho que sente ser o seu, que sente que deverá percorrer durante aquele sempre que é enquanto dura, enquanto ninguém vem destruir os cenários porque está na hora de gravar outra novela, enquanto se sente feliz.
Depois, certamente, ou não, haverá um novo final que, para bem da sua felicidade, não será feliz.
Como alguém diz, a vida é cheia de nuances e temos de aprender a viver connosco, com tudo o que de bom e de mau acontece, para ainda sermos capazes de nos proporcionar mais finais felizes até ao fim do campeonato. (Aqueles que vieram só ver a bola, são capazes de se perder.)

quarta-feira, 11 de março de 2009

O Caminho

"Ser crescido é perceber que não há certezas.
E depois é saber encontrar um porto seguro, um ponto de referência no meio do mar das nossas desilusões e incertezas.
Quando tudo o que constituía a base da nossa vida, aquele pilar fundamental, se desmorona... ficamos com esta tarefa inglória e angustiante de tentar descobrir o nosso caminho. E tanto tempo passamos a tentar descobrir o caminho... que não percebemos que a vida em si é o caminho, e ela vai passando por nós..."
Não há nada que possa substituir uma voz amiga que desfaz o nó, ilumina a sombra da dúvida e assim torna possível a crença absoluta de que este é o trilho certo.
Há quem passe uma vida inteira sem se cruzar com alguém assim.
Há quem passe uma vida inteira sem ter quem lhe transmita esta poderosa verdade.
Por eles partilho aqui o meu privilégio.
Obrigada.

sábado, 7 de março de 2009

Licença Sabática

Entende-se por Licença Sabática um período de interrupção de actividade, vulgarmente gozado por investigadores de nível bastante superior, no sentido de aprofundar pesquisas, recolhendo experiência e conhecimento a tempo integral.
Para o leigo comum trata-se concretamente de não fazer nada durante um bocado, aguardar o alcance de um estatuto académico mais sério e verosímil, tendo, de certa forma, o usufruto de maior margem de manobra e disponibilidade para descansar.
À margem das considerações de senso comum sobre cientistas e intelectos supra-sumos, a verdade é que é difícil perceber que parar significa mais do que não fazer coisa nenhuma.
Estar quieto a ver o tempo passar não será de todo um motor útil para passar o tempo mas talvez seja, em todo o caso, uma forma cautelosa e consciente de não se deixar passar pelo tempo.
Acordar para a vida e para si próprio, observando serenamente em redor, ajuda a evitar que o redor nos adormeça como que em cenário defunto. Olhar em volta antes que o mundo nos troque as voltas e seja tarde demais para dar aquela volta de que se necessita.
Não será para quem quer mas apenas para quem leva isto de viver verdadeiramente a sério. Quem é demasiadamente exigente e atento para ir vivendo. Suficientemente forte e corajoso para suportar o terror da mudança. Claramente inconsciente na possibilidade de descobrir que a descoberta pode ser mais infeliz que a ignorância. Moderadamente louco para assumir a hipótese de estar redondamente errado.
Independentemente da crítica, das barreiras, da falta de verbas afectivas e das dificuldades em obter mecenato psicológico, estes investigadores, na vida como na ciência, como missionários, jamais abandonam a sua causa, levando a cabo a redacção da sua tese.
Não haverá futuro na Torre do Tombo desta audaciosa jornada nem Nobeis descobridores de tesouros humanos sem estes tristes nobres heróis salvadores de si próprios.
Por uma hora, um dia, uma noite, um mês, um ano...., o mundo, o trabalho, a vida e os outros aguardam a conclusão da pesquisa. Esperam pela paragem que é caminho para andar. Respeitam o momento de quem se recolhe. Consentem a ausência de quem está presente ao presente. Dão licença.
E o sabático licencia-se a sê-lo.
(Entenda-se por Licença Sabática um investimento a fundo na vida e em si próprio.
Para o leigo comum, amuar, ser esquisito.)

domingo, 1 de março de 2009

Vida de Cão

Como seria bom ter quatro patas bem assentes no chão, um faro irrepreensível para encontrar o que se procura e ser o inquestionável melhor amigo de alguém.
Ter a responsabilidade de guardar uma casa, arrumar objectos queridos de forma inalcansável, analisar forasteiros, trincar pernas marotas e receber festas de recompensa.
Como seria maravilhoso percorrer uma multidão desconhecida sem medo e ter uma trela bem segura à mão de quem amamos.
Alçar a pata para a vida, marcando o território de tudo o que nos interessa contra usurpadores e sentir tanto conforto em qualquer jardim como na sanita de nossa casa.
Como seria libertador partir de casa, saltando muros e quebrando correntes, rumo a uma expedição dolorosa e competitiva, por entre fugas, lutas e noites de insónia, pela paixão da nossa vida. E regressar após um mês de conquista sem mazelas nem problemas de consciência.
Como seria mais simples ladrar repetidamente para repelir quem não é de confiança e uivar nos momentos de saudade pela ausência de alguém.
E enfrentar com coragem o abandono, percorrendo os caminhos do frio, da fome e da solidão, sabendo que se fez tudo o que era humanamente possível.
E sonhar em liberdade o futuro que pode estar ao dobrar da próxima esquina.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

A esse Facínora

"Não me recordo se to disse alguma vez, mas creio que há dentro de nós, escondido, latente, um fascista comum, um ditadorzeco pouco refinado. Há-de ser como uma larva, ou um vírus - alimentando-se de nós, vivendo do nosso sangue - que se aloja nas imediações do sítio que nos comanda as vontades e que, quando desperto, nos obriga a querer vergar a vontade alheia e nos força a olhar o mundo pela medida do nosso umbigo. Não há que enganar: assim somos todos e nem tu nem eu havemos de ser diferentes. Será verdade que nem todos despertámos um dia com vontade de invadir a Polónia e que nem tu nem eu nos entretemos a gasear judeus, mas não há-de ser grande a distância que vai daqui ao querer que tu sejas a imagem que eu fiz de ti sem te consultar previamente. Quando muito, é uma questão de oportunidade. Ponham-me uma multidão patrioteira e sedenta de vingança à frente e também eu serei um facínora. Sê-lo-íamos todos, tenho a certeza, e é por isso que só respeito os líderes que tenham medo de si próprios, que reconheçam em si a presença do mal e que, por isso, estejam de sobreaviso, dispostos a lutar contra a besta no instante em que ela acordar da sua hibernação. É isto um democrata - aquele que luta contra o totalitário que tem dentro e que consegue vencê-lo e mantê-lo reprimido."
Manuel Jorge Marmelo
A esse facínora que nos mascara o ano inteiro de personagens que não queremos ser:
- Já não queremos ter máscara.
A esse facínora que nos induz a vestir os outros com o fato que melhor nos encaixa:
- Queremos despi-los desse fardo.
Ao ditadorzeco que nos convence de que somos o maestro da nossa própria vida:
- Sabemos que esta orquestra não é para nós!
A esse ditadorzeco que nos engana com a história do livre arbítrio, dos sinais e outras coisas que não são mais do que grãos de milho que deixamos a nós próprios de forma que o destino seja aquele que desejámos:
- Já não pretendemos ser escravos dessa falsa liberdade.
Ao fascista comum que nos obriga a exigir a reciprocidade no amor como defesa da nossa profunda solidão:
- Já não somos felizes a exigir o amor de ninguém.
Ao totalitário que nos evade até querer cruzar a realidade e os sonhos, sem nos deixar viver serenamente um mundo e outro em separado:
- A insatisfação que nos define não é definição para a Paz.
Neste meandro de pseudo-democracia humana escrita de azul, suplicamos em surdina por um 25 de Abril.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Da Sra. das Febres à S. João de Deus

Percorro desde miúda o caminho da Avenida Nossa Senhora das Febres à Rua São João de Deus. A pé. Vulgarmente em dias de Sol. Os anos vão passando e o percurso vai-se tornando mais curto.
Vamos perdendo as melhores e mais características pessoas da vila e assim, não há uma maneira mais literária de o dizer, despedimo-nos de um já saudoso espírito de vizinhança ancestral.
Nos dias em que os acompanhamos na derradeira caminhada, cada um se recolhe no seu pesar. Com rostos fechados, vemos os senhores de capa branca e gola vermelha a carregar estandartes. Grupos de homens ou mulheres de ar carregado comentam o passado e o fim por que todos passamos. Encontram-se pessoas que já não se viam há muito tempo e que tão cedo não voltaremos a ver.
Nesses dias não choram bébés nem ladram cães, não há malucos pelas ruas e até a maltinha das borbulhas parece apresentar-se à altura.
Nesses dias prosseguimos caminho mesmo que o sinal esteja vermelho e não há paragens, todos sabem o código de silêncio e o ritmo do passo lento que mantemos porque, na verdade, não há pressas quando fazemos por alguém a única coisa a fazer quando já não há, de facto, nada a fazer.
Nesses dias, quando partimos da S. João de Deus rumo ao destino onde não há futuro, sabemos que há menos alguém que fará parte do nosso futuro e sem a qual o futuro não será igual.
Frequentemente não custa subir de novo e regressar à S. João de Deus perante a simpática e atenta Igreja de São Brás. Mas custará a partir desse dia a ausência de alguém com quem comentar o sucedido. E entender que a maltinha das borbulhas não poderá perceber o legado.
Quando eu vou a pé da Sra. das Febres à S. João de Deus, não importa ir da porta 31 ao endereço 33. Não importava andar. Importava parar no caminho.

A confiança é um lugar estranho

"Um adulto é uma crinaça que o mundo inteiramente enganou."
António Alçada Baptista
Andar entre a multidão é hoje percorrer um impessoal e gélido corredor de hotel por entre quartos fechados, portas trancadas onde se pode ler "Do not disturb".
Talvez a medida da entrega à vida, à sociedade, ao futuro, ao trabalho e ao amor dependa apenas de uma questão de confiança - no mundo, em Deus e em si próprio.
Talvez a globalização envolva um espírito de generalização no qual o valor das instituições se sobreponha já, em verdade, ao valor das pessoas que, em conjunto, as constituem.
Desconfia-se da justiça, da política e da família, da entidade patronal, da Igreja e do sistema em geral.
Desconfia-se do poder e da oposição, dos grupos e dos independentes, das maiorias e das minorias, dos populares e dos anónimos, dos fortes e dos fracos.
Desconfia-se do pretérito, imperfeito se o foi, perfeito porque já não existe e mais-que-perfeito porque isso é para idealistas que não sabem nada da vida e um dia vão entender as coisas como elas são.
Desconfia-se - por causa da hipocrisia, do sofrimento e da mágoa - da honestidade, da felicidade e do amor quando eles surgem. Como na história em que não se crê na verdade depois de tanta mentira.
Desconfia-se de quem traiu e de quem pode trair, desconfia-se de quem nunca traiu e de quem talvez não vá trair porque senão já é estar a deixar margem para a traição.
Dizem que se deve confiar, desconfiando.
...
Já não se percebe se confiar é correr o risco de se defraudar, dar-se uma oportunidade de não ser defraudado ou dar o benefício da dúvida, aguardando, pacientemente, pela decepção.
Ou talvez uma definição qualquer, onde não entram palavras como defraudar, traição, decepção, em que confiar seja somente confiar.
No meio disto tudo já se desconfia da própria sombra porque dizem que quem desconfia não é de confiança.
E isto tudo porque é uma tremenda desilusão que o amor acabe, que a solidão nos invada, que às vezes nos abandonem e nos persuadam assim a deixar a vida ao abandono.
Desconfio que seja essa a razão pela qual desconfiamos, porque custa saber que nem a vida nem os outros existem para concretizar os nossos sonhos, ninguém o fará por nós e muitos não farão sequer nada a nosso favor.
Muitos outros sim, a esses devemos, depois de olhar cuidadosamente pelo óculo da porta, deixar entrar, e "disturb".