sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Num frame

É difícil captar um rosto num frame. As suas matizes e expressões. O temperamento e a atitude. A luz e a sombra do olhar. A loucura e a sensatez dos gestos. O barulho calado das emoções.
É complicado retratar uma mente num blog. Oferecer uma boa amostra de génio e ignorância. Desenhar traços complexos sem subestimar a banalidade. Marcar linhas triviais sem esquecer a erudição. Fazer viajar um leitor sem o aprisionar. Inventar uma verdade metida dentro duma versão. 
É impossível resumir um ano num post. Mostrar o tamanho das vitórias alcançadas. Envolver a profundidade das reflexões. Guardar o crescimento das metas. Inventariar os momentos e as pessoas. E todas as histórias mal contadas.
Os meus votos para 2011 são igualmente impassíveis de reter. A dimensão das aspirações. A monumentalidade dos desafios. O fascínio dos medos e das imperfeições. O ardor e a força dos desejos. A vontade de ser melhor.
Bom Ano.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Pelas plumas de Platão

Seria importante haver um momento dedicado a toda a parefernália de confissões apaixonantes. Abríamos os armários enclausurados e era desatar a contar do nosso amor platónico àquela pessoa que nunca desconfiou. E então podíamos falar desalmadamente das vezes em que a olhávamos sem ninguém ver e recorríamos a métodos inusitados para ouvirmos o que dizia. Em que recolhíamos informações muito específicas de forma a alimentar um imaginário com requintes de realismo. E temíamos com terror o dia em que essa pessoa nos aparecesse pela frente e afinal fosse só mais uma pessoa normal. Mesmo sabendo que ela estava tão longe de saber de nós... que nem tropeçando nos veria. Fico aborrecida com a solidão que envolve estes segredos. E acho piada à idade porque devolve um charme renovado à sua declaração. Voltamos a ver a pessoa depois de mil anos e ainda a conhecemos como só nós poderíamos. E ela sem saber que uma desconhecida parte de si terá habitado noites a fio a memória de um estranho envergonhado... capaz de a conservar como um secreto presente.
Talvez valha a pena fazê-la feliz.
Talvez o Natal seja feito de muitos presentes destes. De votos e confissões que encontram numa quadra de sensibilidades o seu melhor contexto. De palavras escondidas em rotinas quotidianas, de gestos abafados pelo silêncio, de desejos de amor por concretizar. Quando oferecemos o tesouro de uma paixão escondida a alguém, há qualquer coisa de incondicional que é irrepetível. Que nos liberta para uma imensa capacidade de dar e que nos faz sentir que já poderíamos morrer mais descansados. Não valeria a pena ter tido borbulhas, não valeria a pena ter sido adolescente se não fosse para aprender a sentir assim. Há qualquer coisa que sobra de nós para aqueles que amamos. É preciso oferecer essa herança enquanto ainda existirem apaixonados, antes que as vidas e as consoadas se esvaziem. Feliz Natal.

domingo, 5 de dezembro de 2010

En construcció

Vi a Sagrada Família de Barcelona. A obra inacabada.
Tem o impacto monumental de um edifício marcante. Embora tenha gruas por todo o lado. E tenha partes tapadas por andaimes. E haja todos os dias pessoas que de alguma forma lhe toquem e a retoquem. E haja a todo o tempo um ruído e uma encenação em seu redor. E que de todos os que a admirem e visitem, cada um a leve de forma diferente. E que ninguém saiba como e quando poderá terminar. Os anos vão passando e, enquanto algumas partes se renovam, há outras que constantemente envelhecem. Talvez até resida neste facto a sua característica mais peculiar - é um lugar que continuamente se inunda de incerteza. E nesse lugar habita uma identidade em mudança, cujo valor nem se pode questionar. É esquisito amar uma coisa assim.
Se calhar a Sagrada Família de Barcelona é como uma mulher.
Também pode ter o impacto monumental de uma criação marcante. Embora tenha sensibilidades por todo o lado. E tenha partes tapadas por rasgos de humor incompreensíveis. E haja todos os dias pessoas que de alguma forma a toquem, esforçando-se ela própria por se retocar. E haja a todo o tempo um ruído e uma encenação em seu redor. E que de todos os que a admirem e conheçam, cada um a leve como uma mulher diferente. E nem a própria saiba como e quando poderá terminar. Os anos vão passando e, enquanto que há algo nela que se renova, algumas aspirações constantemente envelhecem. Talvez até resida neste facto a sua característica mais particular - uma mulher é um lugar que continuamente se faz e se desfaz, inundado de incerteza. E nesse lugar habita uma realidade autêntica, em mudança, cujo valor nem se deve questionar. Deve ser preciso muito, ou não devia ser preciso mais nada, para amar uma coisa assim.

sábado, 4 de dezembro de 2010

El món són peces


Antoni Gaudí transformou o mundo sacralizado das linhas rectas num universo ondulado ao tamanho da nossa imaginação. Reinventou a verticalidade das grandes obras à medida do transferidor de que são feitos os ciclos. E pintou com cores os traços entre os quais nos havemos de cruzar. Porque nada do que é humano obedece ao esquadro austero da relação perpendicular, pode a arte habitar as curvas sinuosas de que são feitos os sonhos.
Para revestir esse óculo acidentado que tem vista para a nossa existência, vestiu as superfícies de pedaços de mosaicos destroçados perto de se voltar a encaixar. Como se repousassem numa varanda imensa virada para o que está para vir, os cacos partidos são em si uma unidade sobre a qual importa reflectir. Os bocados formam um sentido rebuscado que permite arredondar os cantos. Significam um objecto completo que não evitou de se partir.
A imperfeição é uma verdade solitária que nos esmaga em pedaços. Os caminhos são uma porta refractária difícil de alinhar. Como se toda a procura fosse uma parede ladrilhada, é preciso quebrar para ajustar.