sexta-feira, 24 de julho de 2009

Fronteira

Sentada entre as quatro paredes do carro, com a embraiagem em espera, mãos prontas a operar assim que surja o verde.
Olho em frente e atravesso a fronteira.
Vejo os carros a suceder-se num bailado atordoado, quase cómico, de pequenos andarilhos irrequietos, transportando as mais compenetradas figuras de todos os tamanhos e feitios.
Após o colectivo vem o meu verde e com ele o meu solo no embaraçoso espectáculo.
Deste lado da fronteira sei o ridículo a que nos sujeitamos.
Significado flagrante de uma insatisfação e insegurança quase doentia de não se ver suficientemente válido nas próprias pernas para chegar onde quiser, de tal forma ser necessário o servil motor para transportar. No fluxo indecoroso onde 100 rodas iguais num único sentido substituem 50 pés diferentes com caminhos obtusos.
E pergunto de forma recorrente por que razão há sempre uma fronteira entre o comprimento das pernas e o tamanho do local onde se pensa chegar.
Por que razão haveria de haver uma razão nisto tudo...
Aquela razão que vive no ponto que compõe a fronteira entre o que está e o que devia estar, entre o que se tem e o que se preferia ter, irremediavelmente mais perto daquele que se é do que desse outro que se sonha ser.
Tonturas das lutas dos podres e dos poderes, passa-se mais tempo a trabalhar para o que não se consegue do que a conseguir o trabalho que lhe cabe.
Mais tempo em torno da semente dos frutos de outra época do que dos galhos carregados de peças por colher.
Nesta fronteira de ramos, folhas e recursos onde o tempo não pára de correr.
Sigo a escrever sobre esse lugar onde nenhuma palavra ou máquina pode funcionar, vivendo do lado da linha onde não é suposto estar.
E nestes momentos sinto-me como que sentada entre as quatro paredes do carro, esquecida de que sei andar, esperando o verde, para arrancar.

domingo, 19 de julho de 2009

What a silly thing to say...

Chamam-lhe então, a título de comentário pseudo-intelectual, a silly season.
Só nestes parâmetros se compreenderia a afirmação, dado que não será necessário haver algo mais a esperar do que chegar a época por que todos esperam.
Só nestas condições se chamaria silly, por nada acontecer, ao período em que nada mais se improvisa, porque tudo acontece.
Senão vejamos.
Começa quando o final da tarde se estende até nunca mais acabar, havendo tempo para sanar todas as dores e tensões, antes da noite chegar. Há tempo para o cafezinho que se andava para marcar já lá vão 15 dias e para os passeios que muitas pernas andavam a pedir já lá vai mais de 1 ano. Há tempo para fazer esvoaçar os vestidos de tecidos coloridos há vários meses enclausurados no armário, a aguardar. Há tempo para que os pés prisioneiros dos sapatos se possam ver agraciados por uma liberdade condicional. Há tempo para aparecer nas esplanadas, nos concertos, nas churrascadas, para fazer acertos de contas com o mar.
Nesses fins de tarde corre por vezes uma brisa que quase se poderia confundir com frio. E a pele já habituada a suar vê-se invadida de uma espécie de espirro, subliminar. Sabe bem nesses momentos poder optar por ir ou não ir buscar um agasalho. Sabe bem saber que esse vento refresca mas não pode gelar. Sabe bem esta imunidade contra as fúrias naturais e hostilidades em geral num período em que nos dão tréguas.
Os flagrantes políticos, as mágoas da humanidade, os dramas noticiosos, as chuvas mananciais... As meias de lã, os lençóis de flanela, as botas de borracha, a lama por lavar, o tempo medido, as escuridão precoce... tudo fica numa espécie de hibernação... que não deixa saudades...
A vida reveste-se de uma plenitude mais saudável, particular, uma amplitude de serenidade incomparavelmente mais agradável, singular.
Tudo mais do que isto é um esquema entediante e duvidoso, inventado durante o resto do ano, para nos alienar.
O que é silly é resmungar o ano inteiro pelas férias, vitimizar-se de outras misérias mais, e depois mergulhar numa multidão incomodada, a correr, e aproveitar para comprar um livro de palavras cruzadas, para se entreter...

domingo, 12 de julho de 2009

Pólo a Pular

E reduz-se a inquietude da forma e do conteúdo, do fado e da virtude, aos dois monstros do pecado que repousam no íntimo do ser educado.
Se está fresco ou abafado, largo ou puxado, solto ou amarrado, branco ou torrado, perto ou apartado, aberto ou fechado, doente ou curado, ferido ou cicatrizado, amante ou amado.
Certo ou errado.
E já não se pode correr nesta linha simétrica, sem sombra de astúcia geométrica ou ponta de genialidade estética a apreciar.
Falta respirar no chão dos atalhos, a suar dos seus trabalhos, a entrar nos baralhos de outras cartas para jogar.
Falta mergulhar num outro edifício de cariz mais propício onde o custo/benefício seja melhor de pesar.
E então a satisfação de correr com paixão sem nenhum senão a temer, de buscar e emoção num qualquer garrafão onde se possa beber, trará a razão da perfeita ilusão que é continuar a escolher.... entre duas facções que já não têm pregões de que se valer...
O vazio pode ser um lugar preenchido em vez de um espaço por encher.
De lá é possível olhar sem um qualquer cisco que impeça de ver.
Quando o escuro invadir o céu e não houver cólo onde sentar, vou imaginar que também a estrela abandona o pólo e sai por aí, a pular.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Ana Rute is coming to town

Tudo começa com um sussurro teimoso que chama repetidamente para o que tem de ser. E acaba com o crédito que é necessário dar.
O percurso faz-se por entre o riso sedutor dos atractivos e o tremer das pernas entre verdes medos e interrogações.
O percurso faz-se a sós com a imensa equipa de bastidores.
O percurso faz-se com a convicção de que será certo tudo o que possa haver de incerto ou mesmo de errado.
O território faz do estreante um estrangeiro que se perde no caminho para a rua onde mora.
Mas a casa já lhe pertence antes de ser sua, escolhe os que a habitam com a precisão de um sábio, cruza vidas e tem vontade própria, como as varinhas que indicam o seu mago.
O espaço é sempre anárquico e hostil para um estranho, um esquema organizativo complexo, profundo e perfeito para um velho conhecido. Um quadro sinuoso de quem é atento entre quem é distraído.
Para o infinito vira-se a bandeja colossal, o palco a que assistem absortos mil rostos de fachadas expressivas, olhares de centenas de luzinhas de presença, a plateia ideal para todo o tipo de espectáculos, sejam diálogos, monólogos ou silêncios.
E avança como um homem para uma mulher - convicto e seguro, apesar de na verdade desconhecer absolutamente onde se está a meter.
Acertar é uma possibilidade, não uma imposição.
Subitamente tudo faz sentido.
Já não importa se é chegar ou partir.
Ir não é despedida, é reencontro.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Ser razoável


"- Queria ver um pôr-do-sol... Dai-me esse prazer... Ordenai ao Sol que se ponha...
- Se ordenasse a um general que voasse de flor em flor como uma borboleta, ou que escrevesse uma tragédia, ou que se transformasse em ave marinha, e se o general não executasse a ordem recebida quem, eu ou ele, teria a culpa?
- Serieis vós. - disse resolutamente o Principezinho.
- Exacto. É necessário exigir de cada um aquilo que cada um pode dar. - continuou o rei. A autoridade repousa, antes de mais, sobre a razão. Se ordenares ao teu povo que se lance ao mar, ele fará a revolução. Tenho o direito de exigir obediência porque as minhas ordens são razoáveis.
- Então o meu pôr-do-sol? - lembrou o Principezinho, que nunca esquecia uma pergunta depois de a ter feito.
- Hás-de ter o teu pôr-do-sol. Vou exigi-lo. Mas esperarei, dada a minha ciência de governo, que as condições sejam favoráveis."

Antoine de Saint-Exupéry

...
Num planeta curioso e distante, onde o Sol se ergue e se põe repetidamente, servo absoluto de uma qualquer ordem que se desconhece, mora uma única majestade inexorável, posta em seu trono solitário e resoluto, perante o imenso universo onde cintilam possibilidades.
Mora ainda uma única súbdita, incansável e obediente subalterna do Regime Real da Razão.
Por lá passará também, pontualmente, um Principezinho, a questionar cada premissa do feudo instituído... Com subtileza, a rebelar a cativa, a melindrar a realeza...
Ver um pôr-do-sol? Huuuummmm... Não sei. Temo vagamente não ser possível.
Não se pode ser general, e borboleta, e ave marinha... Não se pode pedir a um peixe que combata, nem que voe como uma andorinha...
E no Reino abastado em erupção, há uma raínha que já não consegue mandar e uma súbdita que não quer ter razão.
Mas não se pode pedir a uma borboleta que nade, que escreva tragédias ou que vista farda...
Cada um é o que tem de ser. E o que tem de ser não tarda.
A majestade regressa ao seu trono com determinação. Ao seu lado terá a súbdita, que sabe corresponder de forma amável.
Quanto ao Principezinho e ao seu pôr-do-sol...
Sempre que o planeta continuar a mexer, em busca dessa ciência de ser razoável, o universo inteiro esperará para ver a envolvência do dia em que será favorável.