sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Num frame

É difícil captar um rosto num frame. As suas matizes e expressões. O temperamento e a atitude. A luz e a sombra do olhar. A loucura e a sensatez dos gestos. O barulho calado das emoções.
É complicado retratar uma mente num blog. Oferecer uma boa amostra de génio e ignorância. Desenhar traços complexos sem subestimar a banalidade. Marcar linhas triviais sem esquecer a erudição. Fazer viajar um leitor sem o aprisionar. Inventar uma verdade metida dentro duma versão. 
É impossível resumir um ano num post. Mostrar o tamanho das vitórias alcançadas. Envolver a profundidade das reflexões. Guardar o crescimento das metas. Inventariar os momentos e as pessoas. E todas as histórias mal contadas.
Os meus votos para 2011 são igualmente impassíveis de reter. A dimensão das aspirações. A monumentalidade dos desafios. O fascínio dos medos e das imperfeições. O ardor e a força dos desejos. A vontade de ser melhor.
Bom Ano.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Pelas plumas de Platão

Seria importante haver um momento dedicado a toda a parefernália de confissões apaixonantes. Abríamos os armários enclausurados e era desatar a contar do nosso amor platónico àquela pessoa que nunca desconfiou. E então podíamos falar desalmadamente das vezes em que a olhávamos sem ninguém ver e recorríamos a métodos inusitados para ouvirmos o que dizia. Em que recolhíamos informações muito específicas de forma a alimentar um imaginário com requintes de realismo. E temíamos com terror o dia em que essa pessoa nos aparecesse pela frente e afinal fosse só mais uma pessoa normal. Mesmo sabendo que ela estava tão longe de saber de nós... que nem tropeçando nos veria. Fico aborrecida com a solidão que envolve estes segredos. E acho piada à idade porque devolve um charme renovado à sua declaração. Voltamos a ver a pessoa depois de mil anos e ainda a conhecemos como só nós poderíamos. E ela sem saber que uma desconhecida parte de si terá habitado noites a fio a memória de um estranho envergonhado... capaz de a conservar como um secreto presente.
Talvez valha a pena fazê-la feliz.
Talvez o Natal seja feito de muitos presentes destes. De votos e confissões que encontram numa quadra de sensibilidades o seu melhor contexto. De palavras escondidas em rotinas quotidianas, de gestos abafados pelo silêncio, de desejos de amor por concretizar. Quando oferecemos o tesouro de uma paixão escondida a alguém, há qualquer coisa de incondicional que é irrepetível. Que nos liberta para uma imensa capacidade de dar e que nos faz sentir que já poderíamos morrer mais descansados. Não valeria a pena ter tido borbulhas, não valeria a pena ter sido adolescente se não fosse para aprender a sentir assim. Há qualquer coisa que sobra de nós para aqueles que amamos. É preciso oferecer essa herança enquanto ainda existirem apaixonados, antes que as vidas e as consoadas se esvaziem. Feliz Natal.

domingo, 5 de dezembro de 2010

En construcció

Vi a Sagrada Família de Barcelona. A obra inacabada.
Tem o impacto monumental de um edifício marcante. Embora tenha gruas por todo o lado. E tenha partes tapadas por andaimes. E haja todos os dias pessoas que de alguma forma lhe toquem e a retoquem. E haja a todo o tempo um ruído e uma encenação em seu redor. E que de todos os que a admirem e visitem, cada um a leve de forma diferente. E que ninguém saiba como e quando poderá terminar. Os anos vão passando e, enquanto algumas partes se renovam, há outras que constantemente envelhecem. Talvez até resida neste facto a sua característica mais peculiar - é um lugar que continuamente se inunda de incerteza. E nesse lugar habita uma identidade em mudança, cujo valor nem se pode questionar. É esquisito amar uma coisa assim.
Se calhar a Sagrada Família de Barcelona é como uma mulher.
Também pode ter o impacto monumental de uma criação marcante. Embora tenha sensibilidades por todo o lado. E tenha partes tapadas por rasgos de humor incompreensíveis. E haja todos os dias pessoas que de alguma forma a toquem, esforçando-se ela própria por se retocar. E haja a todo o tempo um ruído e uma encenação em seu redor. E que de todos os que a admirem e conheçam, cada um a leve como uma mulher diferente. E nem a própria saiba como e quando poderá terminar. Os anos vão passando e, enquanto que há algo nela que se renova, algumas aspirações constantemente envelhecem. Talvez até resida neste facto a sua característica mais particular - uma mulher é um lugar que continuamente se faz e se desfaz, inundado de incerteza. E nesse lugar habita uma realidade autêntica, em mudança, cujo valor nem se deve questionar. Deve ser preciso muito, ou não devia ser preciso mais nada, para amar uma coisa assim.

sábado, 4 de dezembro de 2010

El món són peces


Antoni Gaudí transformou o mundo sacralizado das linhas rectas num universo ondulado ao tamanho da nossa imaginação. Reinventou a verticalidade das grandes obras à medida do transferidor de que são feitos os ciclos. E pintou com cores os traços entre os quais nos havemos de cruzar. Porque nada do que é humano obedece ao esquadro austero da relação perpendicular, pode a arte habitar as curvas sinuosas de que são feitos os sonhos.
Para revestir esse óculo acidentado que tem vista para a nossa existência, vestiu as superfícies de pedaços de mosaicos destroçados perto de se voltar a encaixar. Como se repousassem numa varanda imensa virada para o que está para vir, os cacos partidos são em si uma unidade sobre a qual importa reflectir. Os bocados formam um sentido rebuscado que permite arredondar os cantos. Significam um objecto completo que não evitou de se partir.
A imperfeição é uma verdade solitária que nos esmaga em pedaços. Os caminhos são uma porta refractária difícil de alinhar. Como se toda a procura fosse uma parede ladrilhada, é preciso quebrar para ajustar.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Road to nowhere

Houve um dia em que pareceu pertinente apagar contactos aparentemente inúteis da lista do telemóvel. Nesse dia começou tudo. A primeira categoria dos dígitos telefónicos ocupou de forma avassaladora o equipamento, sem deixar espaço para mais ninguém. Um destinatário unívoco, inequívoco, era o epicentro das comunicações. Os dias e as estações desdobraram-se no súbito colorido que delirava dum universo monocromático. Não havia paletas para mais ninguém. O preto e branco foi-se ocupando de invadir o peso das estações e dos dias, avariando as mesmas teclas já gastas. Os problemas de rede foram dando lugar a avarias de mau contacto sem orçamento nem arranjo. Houve um dia em que pareceu pertinente indagar sobre outros contactos para completar a mutilada lista de números de telemóvel. Nesse dia acabou tudo. Talvez a vida se resuma só a estes dois tipos de estados. O momento em que a lista de contactos do telemóvel está absolutamente cheia. O momento em que a lista de contactos do telemóvel fica irremediavelmente vazia. Os digítos podem ter combinações infinitas e o dispositivo tem sempre saldo, tem sempre memória para mais alguém. Não há uma primeira categoria, há um sonho em segunda mão. É nesse que eu estou.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A destreza de ser canhoto

O canhoto é aquela pessoa desajeitada que lê e escreve contra a corrente. O canhoto suja a mão com a tinta fresca das linhas que desenha, borratando sistematicamente o papel, como se carimbasse o registo com o seu tom de imperfeição. O canhoto não se converte. O canhoto não é suposto. É o contrário. É ao contrário. O canhoto começa a dançar com o pé errado e tem tendência a rematar do lado errado. O canhoto bate com o cotovelo no destro se ficar do lado direito numa secretária para dois. Insistentemente na vida à procura do lado certo. O canhoto é a parte da caderneta que nem serve para reclamar o prémio, zelando apenas para a identificação do vencedor. É isso mesmo um canhoto, é aquele que tem alguma utilidade mas não reside no grupo principal. E sobretudo porque não reside no grupo principal. A sofisticação do génio sem lugar.  Sem jeito. Que se apresenta como portador de um defeito que não é mais do que o feitio raçudo de ter um cérebro tão direito num mundo predominantemente esquerdo. O canhoto é uma troca de hemisférios num mundo que não troca de critérios quanto ao sentido da circulação.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Nº. 100

Tinha pressa e havia uma porta que dizia: puxe. Eu empurrei.
Com certas portas repete-se este problema - caminhamos com a certeza de que estamos do lado certo... e quando chega a altura de entrar percebemos que trazemos connosco o movimento errado. Subitamente o trajecto parece todo um tremendo equívoco, o fluxo da passagem arrasta-nos no sentido inverso e nessa altura talvez sejamos capazes de compreender que a porta tem sempre qualquer coisa escrita para quem tiver disponibilidade de ler.
Tendo pressa não se entende que a vida não se empurra. Puxa-se.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Don't let me down

A responsabilidade e a consciência. Talvez sejam coisas em falta no governo dessa outra coisa mais ou menos turva que se chama res publica. A decisão sobre aquilo que é comum, ultimamente tão debatida e celebrada, leva-me a pensar que o ideário do povo igualitário e respondente começa na esfera pessoal e irrepetível de cada um. Na capacidade de viver rigorosamente o fio da navalha entre a glória e a decepção. Ter o lustro da seriedade que tempera de medo os avanços e de amargura as desilusões. Que faz imperar as paixões em cada gesto e o terror do abismo em cada intenção. Talvez seja basicamente nisto que concerne a impossibilidade de ser pleno. Tudo mais é interdito. Possa residir aqui a obrigatoriedade de que cada vertigem seja saborosa. E o compromisso individual o mais implacável e indispensável padrão.

sábado, 25 de setembro de 2010

Just breathe

Às vezes chego à conclusão de que a nossa vida é só uma rua movimentada por onde as pessoas vão passando. Uma rua onde alguns têm casa própria e onde outros arrendam apenas um imóvel para mais tarde acabarem por se mudar. É mentira que a nossa vida seja um T2 apertado que aguarda apenas por um inquilino vitalício. É mentira que a nossa vida seja só um automóvel que nos dá boleia para o sítio mais propício. Não, é mais do que isso. A nossa vida é uma avenida indefinida onde várias figuras circulam. Onde alguns peões passeiam diariamente, como que religiosamente. Onde outros entram apenas de passagem, até por engano. Nesta travessa não há um plano. E não deve haver engarrafamentos nem sentidos proibidos. E deve existir estacionamentos e sinais para os que andam perdidos. Os transeuntes devem ter sempre o traçado aberto para poderem seguir adiante e também para mais tarde poderem voltar a entrar. E nós próprios turistas de outras ruas onde ausentes passamos a habitar. Visitamos outros bairros, gravamos novas pegadas, percorremos urbanizações sem fim, até ao último esforço, encontramos os locais mais ermos e profundos, partimos para jardins lascivos, onde nos deixamos ficar, sem perder de vista aquela nossa morada. Não vale a pena tentar fechar a circulação, de nada serve bloquear a passagem, o ditame da ordem está gasto. Os habitantes passam, deixam o seu rasto, nós nunca largamos a encruzilhada. E lá, no lufa-lufa da vertigem movimentada, nós somos só o rosto que respira dessa estrada.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Rentrée

E subitamente todos regressamos às nossas secretárias. Arrumamos as malas de viagem e voltamos aos passeios rotineiros que nos transportam para a realidade quotidiana. Por esta altura a Graça e o Morais fecham os cofres das bolas de Berlim fresquinhas e os gelados que sobraram nos cafés começam lentamente a ganhar gelo. Os nadadores-salvadores arrumam os calções de banho e as meninas da praia regressam à escola, onde vão acabar por perder o bronze. Os autocarros voltam a encher-se de pessoas com ténis e livros e borbulhas e romances adolescentes. A política, a justiça e o futebol voltam a preencher a nossa agenda ao mesmo tempo que as indústrias de chocolates caros fazem novamente abrir as suas linhas de produção. Em meia dúzia de dias as folhas caem de caducas e nós continuamos a teimar em calçar as sandálias até uma chuvada encher de terra molhada os nossos pés. Tudo faremos para não deixar a nossa vida congelar. Os projectos brotam em catadupa esticando os dias que se vão encurtar e as noites serão mais doces quando o frio chamar ao seu posto o chá e o leite quente. Alguns amores de Verão vão amadurecer à lareira, outros vão entrar em hibernação. A escuridão alimentará o rigor das noitadas de trabalho e os cachacóis o charme do frio. Nessa altura a iluminação pública será a companheira dos transeuntes tardios e os chapéus-de-chuva os abrigos das conversas mais inspiradoras. A geada voltará a encher de frescura o odor das manhãs e será esse o cheiro misterioso dos dias vencedores. As temperaturas tratarão de tornar os sonos mais ternos e os dias menos ociosos, favorecendo ainda os desejos de castanhas assadas. Setembro tem esta melancolia do abandono de tudo o que se tem a perder para voltar a recomeçar. Setembro talvez seja uma espécie de Janeiro verdadeiro que marca a cadência do passar dos anos. E os calendários dos desafios. E os votos de coragem. Sobrevivemos. E necessitamos absolutamente de vestir camisolas de lã e depois vestidos e depois novamente agasalhos. E assistir ao fado perpétuo da natureza que se despoja sem medo. Para nascer outra vez. E subitamente regressar é o movimento imperioso que permite a cada um decidir voltar ou não a partir.

domingo, 5 de setembro de 2010

A Metafísica das Marés

O mar apresenta-se talvez como um infinito incomensurável de impulsos ignorados onde insistimos enfim penetrar. Insinua-se hercúleo e estimulante como um vago horizonte evasivo que se estende numa perpétua e muda hesitação entre ir e voltar. Afaga e seduz as massas nesse impasse interdito da inconstância das ondas e obedece implacável à coragem impossível de quem, sem açaimo nem rédeas, o pretende domar. No oceano como na vida há certas águas imprudentes e destemidas impassíveis de se navegar.
Sobre as ondas o mesmo poder proibido que concerne às incógnitas, a mesma manipulação profética que a racionalidade académica tenta construir sobre a natureza. Ambas as concepções tão inúteis e redutoras perante o poder libertador de um mergulho coloquial e sem erudição, surdo em relação à honesta eloquência dos versos e à manifesta vagueza da ciência.
O mestre mar ensina-nos a saltar para acompanhar os movimentos mais bondosos, adaptando o corpo ao ritmo insondável que nos embala. Explica-nos que temos de nos deixar ultrapassar pelas oscilações mais fortes, sob pena de acabar irremediavelmente por nos levar. Convida-nos a avançar para levadas de feição e obriga-nos e desertar quando um impulso irascível parece a todo o custo puxar para um lugar onde não queremos ir. O mar talvez não seja o lugar mais seguro para quem procura apenas a certeza de ficar mas será certamente o cenário ideal que quem pretende sentir a vertigem iminente de partir.
Para corresponder convenientemente aos desideratos do gigante mais ardiloso, às vezes é preciso erguer-se lentamente sobre a prancha, outras vezes há que saltar para ela a pés juntos, sem esperar que em nenhum dos casos o resultado seja propriamente maravilhoso. O terror é a assunção da fraqueza da vontade própria ante a rudeza de um movimento superior que debalde nos engole e se estende impávido numa areia qualquer... Surfar na rebentação pode ser, na vida como na física, o voto da superação do estado de equilíbrio instável. Alcançar a estabilidade pode ser, mais na vida do que na engenharia, uma manobra improvável.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

La vie en rose

Hoje preparei a minha mala de viagem, palmilhei quilómetros de estrada e partilhei bancos de transportes públicos. Mudei de ares e de rotina e engalanei o meu espírito para o momento em que poderei enfim esticar-me ao Sol e cumprimentar o Mar.
O primeiro dia de férias é a melhor altura para usufruir desta constatação, assinando um compromisso veemente de não contar jamais os minutos, de não registar segundos perdidos, reiterando votos sinceros de espremer até ao último sumo cada um de todos os dias. É também o momento certo para fazer balanços e concluir preferencialmente que não há férias melhores do que as férias merecidas.
O meu ano numa palavra: confiança. O afago que significa o alcance de todas as concretizações sob o julgo da dedicação incessante, sob o condão da inspiração e da sorte, sob o signo do apoio do reforço e do reconhecimento de quem importa considerar. Ainda o suporte de vida deste mundo cor-de-rosa onde posso  tratar os regozijos e as recordações, os tons de cinzento e as matizes da imperfeição bem como a catarse dos dias de má memória... tendo sempre quem secreta e silenciosamente os visite com esse quieto mas importante encorajamento.
Partilho aqui o elogio ao que representa realmente estar disponível para usufruir do direito de aprender e de viver como toda a gente. E partilho também aqui o elogio ao que representa realmente estar disponível para corresponder ao dever de recriar e de viver como ninguém.
Hoje preparei a minha mala de viagem e vou saborear das raízes amargas os frutos doces. E é com isto tudo e mais alguma coisa em mente, ou mesmo com nada em mente, que vou finalmente mergulhar o pé na areia.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Neutron Star Collision

O caminho é esse trilho enlameado onde não devemos temer a raiva de nadar. O caminho é essa lagoa alvorada onde nos cruzamos e nos ligamos mas que nunca nos vai chegar. O caminho é esse lugar mais do que uma estrada solitária onde escolhemos entre adormecer ou acordar. É esse sorvo original que não conhece o pudor e que procura num campo esquecido a ternura de uma miragem. É essa capacidade de inquietude e de anarquia e de libertinagem a que alguns chamam cobardia e a que outros chamam coragem.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A Biblioteca Municipal

Recordo-me de subir as escadinhas entre as rudes paredes de pedra no calor do Verão. E sempre que o calor do Verão me afaga com o seu regresso mais eu lamento não poder regressar ao lugar das tábuas de madeira tingidas de onde o mundo inteiro de frivolidades se apartava para que, como num refúgio secreto, pudéssemos marcar um encontro sincero com os livros.
Recordo-me do cartão de identificação da biblioteca que era colorido assim como as folhas de requisição. Eram do mais terno cor-de-rosa, azul ou verde que pela cegueira da memória já não sei precisar. Mas precisos eram os traços escritos à mão para os preencher, com a honestidade e espontaneidade do manuscrito que uma tal modernidade se propôs anular. Era um tempo em que seria anedótico conjecturar a ideia de um computador que pudesse conhecer melhor o código das prateleiras alfabetizadas, tão impecavelmente limpas e organizadas, do que o bibliotecário, só ele, podia decifrar.
Recordo-me de ir buscar os livros infantis à esquerda, na segunda prateleira a contar do chão. Disposição lógica para a acessibilidade das crianças, muito embora ainda hoje saibamos reconhecer que não é a altura das prateleiras o que nos impede de chegar aos livros. Mais tarde os locais de procura foram-se estendendo para outras estantes, acompanhando a tímida amplificação dos interesses e seguindo as criteriosas sugestões do bibliotecário. Um tempo em que um bibliotecário não só era um poço de carisma como era alguém que efectivamente lia livros.
Recordo-me de descobrir o cheiro das páginas por folhear, o odor das palavras lidas que é tão diferente e tão mais generoso do que ar incógnito das linhas por ler. O primeiro toque quase orgástico das folhas de papel sempre virgens e impávidas, aguardando silenciosas quem as venha despentear. O primeiro diálogo mudo com um livro como um primeiro amor, como a descoberta de um corpo nu com rimas e cantos por desvendar.
Recordo-me da pureza sacrificial de transportar responsavelmente o tesouro de um livro no ritual de caminhar para a saudosa Biblioteca Municipal e lembro esse tempo que já não mora senão na brisa que corre onde habitavam as paredes demolidas. O lugar onde parávamos sem que o tempo desse conta das horas é onde hoje estacionam de forma passageira e desconcertada os automóveis.
Recordo-me dos laços que fazemos e dos quais por vezes tão levianamente nos desfazemos. E da quantidade de lugares que amámos desesperadamente e que depois deixámos ruir. E essa brisa sinto-a agora, ainda intocada, encantadora, guardada no interior de um livro.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

terça-feira, 27 de julho de 2010

Déjà-vu

O que eu detesto nas pessoas passivas é essa capacidade de se deixar ir para lado nenhum, de se alhear de todos e de alguém como se na realidade fosse indiferente, a todo o momento, fazer o que deve ser feito ou fazer outra coisa qualquer. O que eu detesto nas pessoas irresponsáveis é essa capacidade de deixar cair seja quem for que se carrega nas mãos, contando com um indulto quase incestuoso desse mesmo alguém que se deixa esborrachar.
E detesto isto como quem é alérgico a uma coisa que dá comichão mesmo antes de se tocar, provocando reacções desmesuradas e imediatas na superfície cutânea, tratáveis apenas pelo afastamento definitivo da dita coisa que as espoleta. E detesto isto como a um vício que é traiçoeiro, redundante e persistente, resistente a todos os tratamentos, químicos, grupos de auto-ajuda, actos de contrição, confissões e pedidos de desculpa. E detesto isto como quem se debate com a impossibilidade que é almejar como remissória a própria natureza de alguém. 
Os episódios em que os referidos eventos acontecem são passíveis de se identificar com relativo rigor sempre que o alvo for repetente nas cenas e se tenha tornado por isso absolutamente alérgico. É sempre a mesma vertigem de estar perante um aglomerado de qualquer coisa inerte que, no seu peso atravancado, não avança nem deixa caminhar. É sempre o mesmo horror de assomar a visão de um adulto num corpo de criança, desprovido de referências, princípios ou aspirações, uma criança que brinca fora do tempo uma infância sem lugar para existir. É sempre a mesma sensação de que há por aí reboques que nada esperam senão um tractor que lhes conceda uma trajectória.
O quadro é austero e triste, porém permeável ao toque de alguma comicidade. Bem propício a um fatal e marcante e irremediável déjà-vu.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Outra vez

Hoje regresso a casa e, adivinhem o quê, outra vez menos alguém aqui. Outra vez menos alguém com quem me cruzar ou acenar, outra vez menos alguém para tomar conta disto até eu voltar. Outra vez menos alguém a quem servir um copo, menos alguém sobre quem comentar, especular ou até inventar aqui ou ali. Que é o que fazemos tantas vezes às pessoas da terra, num sadismo carinhoso que só podemos exercer enquanto as trazemos cá. Outra vez menos uma fatia de bolo ou um desejo que se partilha pelos anos ou mesmo menos um carro pela estrada ou um olhar pela casa que fundamos no mesmo solo. Menos. Menos uma e outra vez. Essa sensação revezada de que uma mutilação silenciosa se evade por estas ruas, arrastando para o álbum das recordações soturnas, como monumentos petrificados algures, as pessoas de quem há bem pouco tempo se sabia novidades. Uma e outra vez e vezes demais e sempre por enquanto até à próxima vez esse estranho fuzilamento que os apaga, aniquilando-nos também, e reunindo inutilmente gente porreira com óculos de sol no largo da igreja. E outra vez o caminho do qual não se fala e donde sairemos jamais ilesos, onde nos vemos outra vez menos perto daqueles que foram o nosso presente desembrulhado e que agora jazem no embrulho dos sempre chorados e esquecidos bons velhos tempos. Mais. Ao fim de contas agora fica mais por fazer e por herdar. Mais e maior a responsabilidade de regressar. Mais triste será a alegria dos fogos pela festa anual e mais teremos nós que a saber festejar. Mais espaço sobrará nas avenidas por onde passear. Mais fraga a crescer nestes matos, mais portas por desenferrujar. Mais um post inútil neste quadro, sobre aquelas vezes em que custa voltar. Hoje eu volto a casa outra vez e, mais do que nas outras vezes, hoje como nenhuma vez... vezes sem conta e eu sem ver nunca mais a casa para onde queria voltar.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Esquadros

É especialmente curioso quando eu vou a um concerto. Quando eu vou a um concerto e acontece acompanhar um cantor numa música. E subitamente até fico constrangida ao ver que ele se engana frequentemente na letra. Eu a passar anos da minha vida para decorar uns versos quase de propósito para aquela noite em que se proporciona cantarmos juntos, naquele mil vezes sonhado dueto perfeito... para ele acabar por cantar uma coisa diferente. Mas eu desculpo. Praticamente sempre. Chego mesmo a aplaudir. Eu valorizo a sua criatividade e ele certamente não se incomoda com o espaço ocupado pela minha imaginação no meio da gente toda. Conseguimos frequentemente esta coisa difícil que é citar versos diferentes de uma mesma canção e depois termos cada um a mesma alegria pacífica e silenciosa. A partir do momento final, e irremediavelmente, eu recomeço a minha vida com as minhas rimas daquela canção e ele vai continuar a espalhar as suas por outro palco qualquer.
Talvez até seja verdade que o melhor de um concerto resida neste hiato descompassado entre o ritmo do artista e o tempo individual dos elementos do público, todos a apresentar repentinamente uma mesma peça que cada qual tantas vezes treinou sozinho. E que nunca mereceu um ensaio geral.
A incorrecção semântica entre as palavras da melodia do cantor e a letra da audiência oferecem significado infinito ao espectáculo, sendo que a errância das sílabas que unem os dois mundos mora no abismo de conceitos de que as canções se fazem.
As noções perdem-se no ar dos anfiteatros entre mensagens sem remetente e códigos sem destinatário, apresentando essa reunião insólita de equívocos, nas linhas de um mesmo poema, o verdadeiro fio desconcertado com que se cosem os concertos.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Os pontos finais são secos

Os pontos finais são secos. E absolutamente estéreis. Fatais, subversivos. Os pontos finais são as bolas mais quadradas de todas. São as bolas mais inconscientes que alguém um dia já viu, incapazes de se saber a rebolar para outra coisa qualquer.
Os pontos finais são apostas em dar a uma frase um tom austero e a pontuar finalmente um pensamento com um ar assustador e convicto e seco de quem se leva extremamente a sério. De quem quer enfim e afinal acabar por chegar ao final.
Mas a secura de um ponto final tem mais humidade e suor e amargura do que uma vírgula qualquer. Pode ter mais humor e génio do que as pálidas reticências sem tom. E até mesmo exclamar um grito contundente com mais vigor do que o histérico ponto de exclamação. Não há forma de terminar uma mensagem sem chegar a um final contundente que pode ser não mais do que um manisfesto desejo de recomeçar a escrever mais e sempre e continuamente.
Em suma, os pontos finais são o pior tipo de bolas, as bolas armadas em quadrados. A quadratura dos finais tem sempre algo de cíclico e circular. E os começos são sempre quadrados antes de os começarmos a lapidar.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

That's what friends are for

Para captar os melhores momentos mesmo que fiquemos mal na fotografia. Para dizer disparates a tal ponto de já não se lembrar onde ia. Para falarmos tudo mesmo sem dizer. Para nos fazer passar um dia inteiro a comer e a beber. Para sermos mais e melhores do que alguma vez seríamos. Para nos conceder uma realidade bastante superior ao que alguma vez sonharíamos.
E por mais que estejamos encharcados faz-nos sempre sentir leves. E ainda que demorados todos os minutos parecem breves. Adiamos as horas e deitamo-nos tarde sem saber o segredo. Pelo qual no dia seguinte parece sempre que tudo acabou demasiado cedo...

sábado, 26 de junho de 2010

Desculpa(s)

A culpa é um inimigo insuportável.
Os culpados devem pedir desculpa e encontrar no perdão maior e melhor descanso, ao invés de cultivar o vício vil de um qualquer escape aparentemente desculpabilizante.
A culpa é um inimigo execrável.
Os desculpados optam por inventar desculpas e sucumbir a uma tal espécie de vitimização da qual acabam por nunca, efectivamente, se desculpar.
A culpa é deixarmos estar alguém como um objecto de vidro mesmo próximo da aresta de uma mesa.
E sorrir.
E depois dizermos que foi um tremor ou um sopro de vento ou um acaso infeliz, mais do que nós próprios, a deixá-lo cair.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Just can't get enough

Deste canto embaraçado falo do abraço. A uma mão, a um amor, a um mar, a um mundo. No geral um abraço é sempre o cerrar de um laço profundo. No geral um abraço é sempre o esmagar do ar que ocupa espaço entre nós, encurtando a distância através de compridos nós. No geral um abraço é o que me empurra e me aperta contra ti, sendo que deve ser exactamente por causa dessa forma cruzada que lhe chamamos carinhosamente um xi. Há também quem lhe chame amplexo... mas isso é estar a acrescentar erudição inútil a um conceito tão pouco complexo. Ainda assim, não quero com isto dizer que não seja uma arte motora com muita técnica, requerendo tantas vezes elasticidade tensora, inspiração e até iluminação cénica. Quem os vê de repente até pode pensar que se trata duma espécie de arte marcial em que os corpos se degladiam. Mas na realidade é a forma mais normal de amassar os afectos que se adiam. Os abraços são, no seu mais intenso querer, muito superiores a uma soma entre atacar e defender. Os abraços servem para contarmos às escondidas coisas que queremos lembradas. E também para comemorarmos jornadas de outras coisas que temos esquecidas. Os abraços têm os efeitos terapêuticos mais diversos e até ao momento não lhes foram reconhecidos traços imperfeitos ou resultados adversos. Ainda assim, os desejos de abraços trepam como larvas e fazem, muitas vezes, as pessoas escreverem sobre coisas parvas. Dependendo das ocasiões posso preferir dos que há mais gigantes ou outros dos que são mais pigmeus. Mas agora, mais do que antes, apetecem-me os teus.

sábado, 5 de junho de 2010

No topo do bolo

Hoje lembrei-me do primeiro dia em que engoli, sem querer, um caroço de cereja. No início veio a aflição de quem, inadvertidamente, deixa escorregar alguma coisa que não devia. Depois veio a interrogação sobre quais os danos e saídas possíveis de um tal hóspede indesejável. Lá me explicaram que pode acontecer, que não há nada a fazer senão deixar que o caroço siga o seu curso e acabe por encontrar a única saída possível. Concluí que tinha tido a experiência de encontrar um caroço aventureiro ou, por outra, experimentar conceder a um caroço uma aventura.
Com o decorrer dos tempos acabei por ir, pontualmente, engolindo um ou outro caroço. Alguns deles especialmente indigestos e indesejáveis. No início veio a aflição de quem, inadvertidamente, voltou a deixar escorregar alguma coisa que não devia. Depois veio a constatação dos danos e saídas possíveis. A cada qual me encontrei nesse fim de tarde abafado onde me ensinaram que pode acontecer, que não há nada a fazer senão deixar que o referido siga o seu curso e acabe por encontrar a única saída possível. Na realidade, talvez os caroços de cereja e os caroços da vida acabem por ter exactamente o mesmo fim.
Os anos passaram e as cerejas continuam a chegar com os dias compridos, sempre renovadamente encarnadas e tentadoras. Sempre deliciosas e irresistíveis. Sempre com caroço.
Continuo a pensar que vêm sempre aos molhos para insistir em educar-nos essa habilidade de conseguir sorver o miolo das coisas e deitar fora o caroço. Para insistir em lembrar-nos que quando se chega a um topo onde há uma cereja, chega-se também a um cume com caroço.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Navegar, navegar...

Sempre gostei de fazer barquinhos de papel. Gosto, pronto. A história começa sempre no surdo silêncio do ócio, na cega solidão acompanhada, na rasgada ternura da infância. Vai-se olhando vagamente para um qualquer guardanapinho, folhita ou bilhete e enamorando-se da sua forma informal e disforme, quase a suplicar por uma nova viagem. Ao toque, o seu rosto usado é como que um doce em dia de festa ou um mergulho em dia de praia, irresistível. Um barquinho de papel podia perfeitamente ser feito a partir de um quadrado mas, na realidade, um meio de transporte tão imperfeito nunca seria perfeito se procedesse de um quadrado. Na verdade, os quadrados de pouco servem nesta vida, sobretudo se for para transformar e mudar, sobretudo se for para repensar, sobretudo se for para viajar. Nesse sentido, basta apenas um rectângulo ousado de quase todas as proporções. Vão-se alinhando as pontas enquanto se desarrumam os sentidos sem ponta por onde pegar. Vão-se unindo os cantos, deixando o resto de tudo arrumado num canto qualquer. As dobras devem ser lavradas veementemente com a insistência com que se vincam os mais venturosos trilhos e as arestas amassadas do papel calcadas pelo método da mais artística geometria. A meio do caminho pode sempre servir para pôr na cabeça o nosso projecto de barquinho, fica-se com o chapelinho de um qualquer soldado a vigiar. Mais volta menos volta, é fundamental o cuidado que se tem a dobrar e desse soldado revirado ficamos com uma flor que até se pode assoprar. Vai-se enamorando da obra e com gosto a flor desabrochar, que com jeito a desdobra vai o barquinho montar. Mais volta menos volta já qualquer solidão desatinada parte para um novo alinhar e vai decerto na volta aqui um marinheiro encontrar. Navegar num copo de água sem ondas ou até em ondas sem mar. Navegar num prato ou numa secretária, onde quer que vão desafogar. Ficará talvez depois largado o barquinho, inclinado, naufragado, encalhado, sei lá, e sozinho. Na fenda entre o ir e o voltar, amado fez novo caminho. Sobre a origem deste transporte, não sei, deve ter sido sonhado um dia com carinho, quando em ócio ao pé dum papel alguém como uma criança terá caído do ninho. Depois das voltas deve ser sempre para lá que me leva o barquinho. Tanto trabalho para ainda alguém revirar o sonho desafogado e o atirar para o cesto do lixo a granel... Pensa-se que é para lá, onde já não giram os moinhos, lá para onde os tolos enviam, sem saber, os barquinhos de papel.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

O amor depois dos 20

Há quem diga que para tal universalidade e infinitude não poderá constituir a idade qualquer óbice.
Suponho que nesse âmbito falemos sobretudo da essência da matéria que, em todo o caso, jamais mudará, pesem as tentativas constantes de a automatizar, industrializar ou mesmo plastificar. Ainda assim, a sua forma apresenta alguma volatilidade de ritmo e germinação, procedendo de estádios pessoais mais ou menos inflamáveis.
É com algum alívio mas, ao mesmo tempo, alguma apreensão que constato que já o amor depois dos 20 é muito menos impetuoso e estandardizado do que aquele que, na adolescência, parece ser movido por uma qualquer borbulha. Ainda assim, o resultado da sua combustão poderá (ou não), nesta realidade, ter mais impacto e sustentabilidade do que uma mera erupção cutânea. São penosos os caminhos da jovem experiência e da maturidade com que se paga o cair das vendas de uma candura primeira...
Que possa ter este amor maiores os seus alicerces e menos opacas as suas vendas, fundado numa robustez epidérmica de mais longas sensações e, de preferência, menos penosas cicatrizações. Que possa este amor ser mais um antes do que um depois. Que possam as formas, de todas as formas, deixar de importar. Que possa esta patetice naïf da passagem do tempo deixar de teimar em emoldurar o amor.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Ouvi dizer que o mundo acaba amanhã

25 anos.
Ouvi dizer que mais depressa do que imagino darei por mim a prantear... foi de fugida...
Como mais honroso tesouro guardo num cofre a inconsciência dos anos que um dia tarde farão inveja à própria mais do que a qualquer outra. Nada melhor do que a inconsciência pode gerar maior cobiça ainda que também ela se muna de insondáveis mantos por desvelar. Será tão infinita e insólita quanto as sucessivas subidas e descidas por assaltar.
Da tenra espinha vai germinando uma mais sólida coluna vertebral.
Na arruada parto pujada por duas bagagens em preâmbulo. A bolsa amassada do despojo passado. A bolha insuflada do bojo sonhado. Neste pacote engalanado do tempo presente é a bolsa que me compassa o caminho e é a bolha que me inclina para a frente. Seja sempre o peso da segunda superior à carga da primeira.
E são umas admiráveis bodas de prata comigo própria o que comemoro nesta segunda-feira. O moínho da convivência continuada é sempre um feito, concertando tantas estranhas inquilinas numa mesma morada.
25 anos.
Ouvi dizer que é melhor que não mais me adie a largada... não vá o relógio pregar partida...

terça-feira, 11 de maio de 2010

Camisolas Berrantes

Há quem não goste de rebanhos. Há quem abomine essas manadas de mímica onde tantos se omitem e se anulam sob o pretexto do conforto sensaborão que pode oferecer um qualquer mercado social de economia de escala. É um facto que o seu esquema reprodutor se multiplica como uma qualquer urtiga difícil de suster. É um facto que na maioria dos núcleos de convívio entre adultos passará este jogo por uma qualquer reedição pueril que se situa entre a comicidade e a farsa.
Ainda assim, momentos há em que pertencer a uma imensa tribo inofensiva poderá, mesmo para uma tal céptica das dinâmicas grupais, ter o seu proveito. Quando a leveza da competitividade clubística se une a uma tal candura da emoção desportiva, todos os motivos são bons para celebrar. Haja tais momentos em que, na falta de dados basilares que nos aproximem, possam estas cores e hinos envolver na festa de uma única tonalidade ovelhas de vários matizes.
Esquecendo as pestes de qualquer índole mais fragosa e rastejante, que bem que sabe uma tal dança ao largo como uma papoila saltitante.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Alma Mater

Tenho para mim que as Mães são o melhor exemplo de que o contrato de propriedade dos encantos da vida não envolve qualquer promessa de facilidade. Pesem quaisquer dores físicas ou morais, danos de alma ou inquietudes de consciência, o caminho da maternidade desdobra-se infinitamente em abnegação e indulgência. Segue de mãos dadas no encontro de uma reflexão profunda sobre a gestão de um legado onde se explanam diariamente os predicados do saber ser e do dever ser. Segue de mãos dadas com uma criança espelhada em si como um universo de possibilidades e prossegue em parceria com um adulto que concretiza em si a universalidade possível. Parte de um longo e temeroso percurso onde deve reinar convicta a responsabilidade de um "faz o que eu quiser" para um trilho iluminado pela responsabilização de um "faz o que quiseres".
Dizem que, depois de ser Mãe, uma mulher fica com os pés maiores. Tem piada. Talvez seja para se apoiar com mais solidez contra todas as forças ventosas com que a fustiga o futuro. Talvez seja para que ligação à Terra se multiplique em perspicácia e pragmatismo, consistência e realismo. Talvez seja o corpo a responder a um apelo do caminho, a prevenir-se para dar passos a dobrar, para correr a dobrar, para amar a dobrar, para resistir a dobrar. Ou talvez seja só mais um ditado popular a sobrecarregar de pressão uma mulher para ser mais do que um errante e finito ser humano qualquer.
E dou por mim, ainda impregnada em fluido amniótico, sentada à mesa a ver um filme com a minha Mãe. As duas a chorar com o raio do filme sobre mães e filhas. Oh Mãe, chiça, este filme é mesmo de todo - digo eu, a soluçar. Ainda é disto que eu gosto de ver - responde a minha Mãe. Tens razão Mãe, a vida boa é a que nos toca, que nos emociona. Que nos liga e nos implica sempre mais. Tens razão Mãe, vamos sentar-nos a vida inteira em frente a uma qualquer televisão a ver um filme triste. Vamos chorar esse filme triste enroladas ao nosso inquebrável cordão umbilical. Vamos chorar esse filme triste a sentir-nos assim tão felizes.

domingo, 25 de abril de 2010

Ósculos

A solene loucura de uma coisa correr bem quando, na sua teia de complexidade e obscurantismo, teria essa tal coisa tantos trilhos conjecturais por onde correr mal.
Vejamos por analogia a suave metáfora de um beijo.
Quando se unem por duas bocas quatro lábios no surdo poema de um beijo unem-se também, e não o ignoremos, dois mundos de medos e sonhos assombrosamente egoístas e diferentes. Nessa ligação emergirá talvez uma súbita e mais lírica alteridade de oscular.
Quando um somatório de cerca de 64 dentes preparados e dispostos a cortar, triturar ou rasgar, habituados inclusivamente a protagonizarem o orgulho narcisista de um sorriso, se anulam em favor de um momento superior há um avassalador evento de humanidade que nos preenche.
Igualmente prodigiosa será a dança de mais ou menos proeminentes narizes. Não menos prodigioso será o ardil com que eventualmente se manobrem também próteses oculares e dentárias, prontas a fustigar... Cada alma tem os seus inefáveis detalhes.
Quando o veremos melhor saberemos então que até a rotina trilhada no sabor de um ósculo será ela não mais do que a vitória sobre um obstáculo que poderemos enfim comemorar.
Eloquente será ainda celebrar tal ardil da prevalência do afecto sobre a destruição num tal 25 de Abril onde também à dignidade indolor devemos profunda gratidão.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Je ne regrette rien

Lembras-te daquele pessegueiro entre cujos ramos em flor me tiraste em tempos aquela que seria, para todos os efeitos, a mais bonita fotografia de sempre daqueles tempos?
Morreu.
Muito me estranhou um dia destes quando, enquanto passava casualmente pelo quintal, o vi ausente. Lá me explicaram então que os pessegueiros são árvores extremamente perecíveis, de parca longevidade. Lá vão crescendo lentamente e escapando a uma ou outra maleita, lá vão esboçando ao clima uns quantos sorrisos para escapar às intempéries, vai-se contando com eles para demulcir todos os estios e eis quando, sem aviso, o inevitável acontece.
Morrem.
Muito teria a dizer sobre pessegueiros e outras árvores de fruto mais ou menos frutíferas, mais ou menos sazonais e efémeras. Ainda assim, devo porém referir que deve caber no orgulho de uma árvore caduca ter um dia oferecido razoáveis pêssegos para roer ao calor, sendo também de acrescentar que não são os seus contados dias que a impedem ainda de figurar em algumas das que podem ser, para todos os efeitos, as melhores imagens de sempre duns determinados tempos.
Mortos.
Estarão de cansaço e alegria quando um dia penetrarem novamente uma sombra tranquila duma qualquer árvore de novos tempos entre cujos ramos espreitem desalmadamente pequenas flores. Na brisa sedosa que agita impávida os seus milhentos pólenes correrão alados todos os tipos de arbustos mais ou menos falecidos, a agitar em espirros e comichões novos serões. Nessa tarde saberão, exaustos, que, para bem ou para mal dos tempos, a perenidade não é para todos.

domingo, 11 de abril de 2010

Ne me quittes pas

Numa cidade estranha, entre ruas agitadas de turistas, comerciantes, artistas, pedintes e afins, jaz incógnito o objecto perdido. Acaso será possível concretizar a impossibilidade de o achar? Acaso não serão as relações sociais uma imensa e intensa banca de perdidos e achados? A todo o instante não seremos todos um objecto deixado em algum lugar... Em cada quadrante não seremos todos um dono aflito que não se cansa de procurar... Acaso será audível esta súplica, este apelo de que somos simultaneamente remetentes e destinatários, por tudo o que somos susceptíveis de ter abandonado em alguma parte e tudo o que seremos susceptíveis de vir nesse sítio a encontrar. Para o prodígio concorre o instinto fiel da boa vontade, emanado da boa fé e da confiança com que se regam possíveis opositores. Para o prodígio concorre a ultrapassagem da descrença e do pessimismo, a vitória sobre o derrotismo, a força da boa consciência de quem, não crendo, não se opõe a acreditar. Entretanto jaz inquieto o objecto perdido que surdo sussura "não me deixes..."... O tempo é absolutamente precioso quando no frenesim dos passos largos lhe grita apertado o seu dono "não me deixes..."... Quando os dois se encontram há um mundo inteiro de improbabilidades que se iluminam. Quando os dois se encontram há um mundo inteiro de impossibilidades que se sobrevivem.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Les Jours Tristes

Do que tratam os dias tristes como os de Yann Tiersen...
Da pior das saudades, a saudade de si próprio. A saudade do calor já no gosto pelo frio, a sombra de ficar já na luz de partir. O augúrio do futuro por vir. A alegria maior de viver o mais absoluta e profundamente um dia triste.
Da tristeza que é sempre uma velha conhecida, mesmo num lugar estranho. A imensa fraternidade de a rever tão longe e tão perfeitamente... Enquanto que qualquer pedaço de terra serve para ser feliz, há lugares especiais que melhor se prestam a ser triste.
Da tempestade de Ruïsdael cristalizada entre os mil triângulos do Louvre, no cheiro dos seus corredores. Agora enfim já sei a que cheiram. Cheiram a uma imensidão que simultaneamente nos agiganta e nos esmaga. Cheiram a passado ilustre e lustroso, cheiram a vitórias e a morte. Cheiram à maior guerra contra o esquecimento, à luta da memória. Cheiram à maior derrota contra o tempo... E cheiram a dias tristes.
Dos humanos. Das vidas dos humanos que passaram sem regresso, a esses humanos como nós. Todos esses humanos que amaram, sonharam empreender a maior arte. Todos esses humanos que questionaram a sua mortalidade, que temeram e que prevaricaram, que lutaram, que tiveram dias tristes.
Do mais energúmeno sentimento de tristeza, pergunto - será o negro a ausência de cor ou a mais completa intensidade de todos os tons?
...
E eis senão quando se vem a encontrar do mais pleno dia triste... a noite mais feliz.

Ça c'est pour moi le plus beau et le plus triste image du monde


segunda-feira, 5 de abril de 2010

Nous sommes ensemble

Jantámos demoradamente as experiências que fomos.
Ceámos agradavelmente os novos que somos.
Amámos, disjuntos, o conjunto de pássaros que lançámos ao ar.
Recebemos, adjuntos, o conjunto de nuvens de que nos ousámos abrigar.
E rimos.
Mas na esfera a que nos opomos não estivemos sós.
Antes fomos cada um no seu antes e no seu após.
A viajar desfiámos os nós.
A viajar vigiámos o nós.
Juntos.

terça-feira, 30 de março de 2010

domingo, 21 de março de 2010

Shutter Island

Talvez possa o caminho ser um imenso cenário de conspiração no qual cada um encontra o secreto desejo de ser herói malogrado.
Talvez possa a viagem ser uma navegação entre traumas e outras tempestades avassaladoras que parecem encerrar uma qualquer ilha no mais íngreme penhasco de si mesmo, longe de tudo.
Talvez possa a loucura ser o último reduto de lucidez para onde resvalar aquando da sucumbência à catacumba da culpa.
Talvez possa a crença numa certa cumplicidade ser o único farol de liberdade para onde correr, alheio às promessas de um futuro indigesto e mutilado.
Talvez esquecer seja a tentação maior de todas, maior do que a traição de si próprio, mais profunda do que a impávida e autónoma absolvição.
Não há crime mais hostil e horrendo, não há ocorrência mais difícil de solucionar, não há causa mais impossível de defender do que a pessoal.
"Vale mais viver como um monstro ou morrer como um homem bom?"
Filme de Martin Scorsese. Recomendo absolutamente.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Publicamente Causada

Será pública a votada causa do abandono da causa pública
Desde a sintomática explosão da república privada
O outro é mais uma temática sem abono

Será então essa causa não mais do que uma pausa
Na absurda ruína lúdica da arruinada vida pública
Onde grassa a rosnada cidadania

Será tão desesperadamente pública a súplica de o publicar
Ao inerte público sem sorvo para multiplicar
Crónico açude de letargia

Será o pudor causado a causa mais pública do prelúdio
Eloquente conselheiro na severa fraga fácil
Da cega devoção à negligência

(Poema Premiado com o 2º. lugar no Concurso de Poesia do Núcleo de Estudantes de Bioquímica da Associação Académica de Coimbra no âmbito da XII Semana Cultural da Universidade de Coimbra, subordinada ao tema Causa Pública)

sexta-feira, 5 de março de 2010

É bom, não foi?

Um dia destes comprou um saco de bolachas de canela embaladas individualmente. Daquelas perfeitas para ir trazendo na carteira. Atentas para distrair um qualquer apetite fortuito. Lá quedaram ansiosas as caladas bolachinhas. Nessa mesma tarde havia de ir esvaziando um a um os pacotinhos. Voraz, ruidosa e desesperadamente. Um apetite gratuito de não deixar esperar pelo gerúndio esquecido da carteira. Não chegaram as tais bolachas ao dia seguinte. Tantas vezes a fome sedenta não faz da vida uma enorme bolacha de canela. Enclausurada num abafado pacotinho individual pronto a rasgar. Sucumbindo aos aterradores apetites de impaciência desesperada. Impetuosa, irreflectida, inadvertidamente. Não fosse o próprio universo um humano esfomeado, a rebelar-se em intempéries, tempestades, erupções. Não fosse o impulso temperamental o prólogo suspiro da implosão.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Hoje eu concorri a um concurso

Hoje eu concorri a um concurso.
Luta concorrida contra o tempo corrido entre morrer ou arriscar.
Escrita corrida contra a corrente rústica da preguiça.
Ruína da dúvida entre correr ou ficar.
A corrosão arruinada da ruptura é ver um recurso no rumo do percurso.
Hoje viver é ser concorrente da sua própria corrida.
E correndo nas ruas achar o seu curso.
E correndo de rasgo vencer o concurso.
Hoje eu roí a corda do tempo corroído.
Luta concorrida contra o casto rosnar avulso.
Da meta a corrente e eu achei o curso.
Hoje sou só eu e o concurso.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Entrudos

Entre tudo o que se veste e se despe, sobra a essência do disfarce.
Na busca do amor serpentinam as linhas sinuosas de tantas histórias de se lhe tirar o chapéu...
Dantes eram as noites regradas pelo cronómetro, regadas pela raça sedenta, desfilando pelos corredores da aventura dos mais tremendos e intensos bailes de sentidos.
Hoje são tão longas e intermináveis as noites de espera, brindadas pelo cáustico negro dos medos, passando o cortejo sem som e conteúdo por entre as vastas e sujas pistas vazias.
Já não se joga a feijões.
Da esperança alimentada permanece o voto pelo corso transparente e livre, despojado, tão menos alegórico, no qual a realidade se agiganta ante um universo pessoal recôndito que se recolhe para o acolher.
Do fundo das perguntas e respostas, mesmo entre os silêncios mais castradores e absurdos, permanecem vivos os fogos doutros carnavais.
Entre tudo o que se veste e se despe, possa a essência sobrevir o disfarce.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

One Year Over

Sob a égide de um cataclismo visceral, recebeu casualmente o signo de Aquário.
Representa talvez somente uma tardia saída do armário.
Sendo de tamanha causa ilustre missionário.
De todos os pressupostos mais ou menos triviais é fiel depositário.
Inspira e suspira como um fim o grito e o eco mais arbitrário.
A rústica paleta dos sonhos é o seu abecedário.
Não havendo para o seu temperamento qualquer prontuário.
No seu código genético não sucumbe jamais a deixar de ser refractário.
A morada para onde parte não tem destinatário.
Gera semana a semana pronto e intangível honorário.
E, na realidade, será efectivamente para alguém um relicário.
Da Mãe babada,
Feliz Aniversário.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

No Teu Poema

Escrevo-te agora para dizer que ainda tenho a loucura de procurar o cavalo para percorrer em prodígio os prados com muitas flores.
E neles guardo as tardes em que me levavas pela mão para comprar a Rua Sésamo. Lá habitam também as primeiras idas à biblioteca, onde me convencias de que brincar com o dicionário era uma actividade simpática, mesmo quando eu ainda não podia saber compreender.
Nas rédeas abraço a cozinha onde me recebias como mais ninguém e a partir de cuja janela me vias tão única e amavelmente partir. Regresso sempre como dantes.
Em cada punhado de mundo de que me apodero, são nossas todas as cores, nelas deposito o teu brilho e também a tua sombra, vivo ainda a vida que sobra e que no tempo das borbulhas não pude conter.
Suave e ternamente.
Por tudo isso deixo aqui o primeiro poema que me ajudaste a decorar e que pretendo, assim como a tudo o resto, não mais esquecer.
Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa, que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.

Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva - nimbos e cerros -
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.

Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.

Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sozinho
Sem um cavalo de várias cores?

Reinaldo Ferreira

domingo, 31 de janeiro de 2010

(H)eras

Os tempos vão sucedendo, quase imperceptivelmente, como os dias de Inverno que trepam lentamente, crescem e passados meses retornam.
Ainda em Janeiro será escusado falar de outra coisa senão dos tempos que levemente atraiçoam os números e as ideias, amplificando de forma ancestral pensamentos novos e arrumando com jovialidade sentimentos velhos.
A conta certa dos tempos não são os impenetráveis e estreitos ponteiros do relógio nem a soma de Janeiros que carregamos ao largo sombrio dos olhos cansados... mas antes o produto da idade que lhes equacionamos.
A idade é uma empresa familiar que padecerá então de crónica insolvência... Ao mesmo tempo que acrescenta solução para muitos problemas, cria entretanto muitos problemas sem solução.
A raiva da fatalidade e o sonho da imortalidade são duas formas de problematizar... A noção da incapacidade de conter o tempo e a conquista de capacidades para dar destino a esse tempo são duas formas de solucionar...
Com a quimera na cabeça e a rasura nas mãos, cogita a hera calada dos tempos sãos.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Right to be Wrong

Digamos que cada um se compõe de um percurso bipartido e inflectido sobre si próprio, onde coexistem e combatem as duas almas em guerra de que falava o Jorge Palma. Nenhuma delas vai ganhar.
Entenda-se então que a especificidade de cada um reside na diferença, forma e dimensão do hiato entre o que é sabido e o que resta conhecer.
Árdua tarefa de construir um império com nexo e esforço de causalidade quando toda a ordem pragmática e muitas vezes dogmática do saber de hoje pode estar tão absolutamente despedaçada amanhã. E mais ainda quando a sapiência de que nos valemos hoje possa estar tão desfeita para os olhos de quem antes de nós tenha já conhecido esse amanhã...
Acabo por concluir de forma assaz embaraçada e surpresa que aquilo que em surdina nos une não será, inesperadamente, o mesmo tipo de conhecimento mas, por outra, fatalmente, o mesmo tipo de ignorância.
Mais curioso é que mesmo sendo a ignorância a companheira mais fiel de que cada um dispõe para percorrer as montanhas da vida, não será demais verificar que, mesmo assim, cada qual tem uma forma mais ou menos adúltera de a deglutir.
Tudo para dizer que, sendo ser pensante a todo alguém cabe ser também ignorante, supondo para isso a probabilidade de errar como a verdade mais fatídica... e a hipótese de acertar como a mentira mais onírica...

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

M'aturar

E começa assim mais um ano entre os votos apressados do futuro e outras determinações de anos velhos que ficam sempre interminadas, encontrando assim a sua conclusão nesse irremediável ou remediado sem tempo a que a impossibilidade as sujeita. Entre o frio e a chuva, como alguém dizia, Janeiro demora. E parece que, até ser possível sobreviver a mais um, a vida não arranca. Tenho observado que o passar do tempo traz novos chuvosos e gélidos janeiros interiores que encontram o seu primeiro sintoma em fortuitas lágrimas que teimam em brotar em comemorações e ocasiões especiais. Parece o glorioso carregar ameno de rigorosos invernos passados que, já à lareira, ainda humedecem um último chorar. Parece que uma certa robustez antiga obriga a uma pontual consagração e tributo, começa a revestir todas as efemérides de mais qualquer coisa... para além da ligeireza do presente e a nebulosa do futuro. Parece que o início do ano já não pode mais vir só e uma certa armadilha mecânica não poderá jamais adulterar para zero o contador. Parece que toda a renovação sazonal demora em si num qualquer e pontual Janeiro que tarda em passar... (causa provável de precipitação impossível de s'aturar) ...residindo nele esta nova e genuína capacidade de m'aturar.