Recordo-me de subir as escadinhas entre as rudes paredes de pedra no calor do Verão. E sempre que o calor do Verão me afaga com o seu regresso mais eu lamento não poder regressar ao lugar das tábuas de madeira tingidas de onde o mundo inteiro de frivolidades se apartava para que, como num refúgio secreto, pudéssemos marcar um encontro sincero com os livros.
Recordo-me do cartão de identificação da biblioteca que era colorido assim como as folhas de requisição. Eram do mais terno cor-de-rosa, azul ou verde que pela cegueira da memória já não sei precisar. Mas precisos eram os traços escritos à mão para os preencher, com a honestidade e espontaneidade do manuscrito que uma tal modernidade se propôs anular. Era um tempo em que seria anedótico conjecturar a ideia de um computador que pudesse conhecer melhor o código das prateleiras alfabetizadas, tão impecavelmente limpas e organizadas, do que o bibliotecário, só ele, podia decifrar.
Recordo-me de ir buscar os livros infantis à esquerda, na segunda prateleira a contar do chão. Disposição lógica para a acessibilidade das crianças, muito embora ainda hoje saibamos reconhecer que não é a altura das prateleiras o que nos impede de chegar aos livros. Mais tarde os locais de procura foram-se estendendo para outras estantes, acompanhando a tímida amplificação dos interesses e seguindo as criteriosas sugestões do bibliotecário. Um tempo em que um bibliotecário não só era um poço de carisma como era alguém que efectivamente lia livros.
Recordo-me de descobrir o cheiro das páginas por folhear, o odor das palavras lidas que é tão diferente e tão mais generoso do que ar incógnito das linhas por ler. O primeiro toque quase orgástico das folhas de papel sempre virgens e impávidas, aguardando silenciosas quem as venha despentear. O primeiro diálogo mudo com um livro como um primeiro amor, como a descoberta de um corpo nu com rimas e cantos por desvendar.
Recordo-me da pureza sacrificial de transportar responsavelmente o tesouro de um livro no ritual de caminhar para a saudosa Biblioteca Municipal e lembro esse tempo que já não mora senão na brisa que corre onde habitavam as paredes demolidas. O lugar onde parávamos sem que o tempo desse conta das horas é onde hoje estacionam de forma passageira e desconcertada os automóveis.
Recordo-me dos laços que fazemos e dos quais por vezes tão levianamente nos desfazemos. E da quantidade de lugares que amámos desesperadamente e que depois deixámos ruir. E essa brisa sinto-a agora, ainda intocada, encantadora, guardada no interior de um livro.