quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A Biblioteca Municipal

Recordo-me de subir as escadinhas entre as rudes paredes de pedra no calor do Verão. E sempre que o calor do Verão me afaga com o seu regresso mais eu lamento não poder regressar ao lugar das tábuas de madeira tingidas de onde o mundo inteiro de frivolidades se apartava para que, como num refúgio secreto, pudéssemos marcar um encontro sincero com os livros.
Recordo-me do cartão de identificação da biblioteca que era colorido assim como as folhas de requisição. Eram do mais terno cor-de-rosa, azul ou verde que pela cegueira da memória já não sei precisar. Mas precisos eram os traços escritos à mão para os preencher, com a honestidade e espontaneidade do manuscrito que uma tal modernidade se propôs anular. Era um tempo em que seria anedótico conjecturar a ideia de um computador que pudesse conhecer melhor o código das prateleiras alfabetizadas, tão impecavelmente limpas e organizadas, do que o bibliotecário, só ele, podia decifrar.
Recordo-me de ir buscar os livros infantis à esquerda, na segunda prateleira a contar do chão. Disposição lógica para a acessibilidade das crianças, muito embora ainda hoje saibamos reconhecer que não é a altura das prateleiras o que nos impede de chegar aos livros. Mais tarde os locais de procura foram-se estendendo para outras estantes, acompanhando a tímida amplificação dos interesses e seguindo as criteriosas sugestões do bibliotecário. Um tempo em que um bibliotecário não só era um poço de carisma como era alguém que efectivamente lia livros.
Recordo-me de descobrir o cheiro das páginas por folhear, o odor das palavras lidas que é tão diferente e tão mais generoso do que ar incógnito das linhas por ler. O primeiro toque quase orgástico das folhas de papel sempre virgens e impávidas, aguardando silenciosas quem as venha despentear. O primeiro diálogo mudo com um livro como um primeiro amor, como a descoberta de um corpo nu com rimas e cantos por desvendar.
Recordo-me da pureza sacrificial de transportar responsavelmente o tesouro de um livro no ritual de caminhar para a saudosa Biblioteca Municipal e lembro esse tempo que já não mora senão na brisa que corre onde habitavam as paredes demolidas. O lugar onde parávamos sem que o tempo desse conta das horas é onde hoje estacionam de forma passageira e desconcertada os automóveis.
Recordo-me dos laços que fazemos e dos quais por vezes tão levianamente nos desfazemos. E da quantidade de lugares que amámos desesperadamente e que depois deixámos ruir. E essa brisa sinto-a agora, ainda intocada, encantadora, guardada no interior de um livro.

4 comentários:

  1. Antes de mais, deixa-me dar-te os parabéns pela forma singela como usas as palavras e de quão profundidade as enches para que nós as possamos ler com deleite e admiração por, talvez, não termos o dom de o fazer ou por timidez nunca o termos tentado.
    Eu, que te vi crescer, fico num estado de embriaguez por ver que a pequena Aninha é agora uma Mulher com seus defeitos e suas virtudes e que virtude esta que fui encontrar, a da escrita.
    Tal como tu, defino-me nas palavras do teu último texto, que bom que era a calma e tranquilidade para a qual éramos transportados ao entrar na biblioteca municipal antiga e sermos acolhidos de forma tão doce e de alegria satisfação por nos ver pela bibliotecária, no meu caso, a saudosa Amélia Pina que tão "enriquecida ficava" como ela dizia ao ver que os jovens da Vila de Carregal do Sal não tinham vergonha de frequentar locais de cultura e nós saciava-mo-nos com as suas histórias, algumas bem reais outras pura ficção mas que nos prendiam horas a fio dentro daquela sala de paredes graníticas e chão de madeira, ar rarefeito devido ao elevado número de publicações e estantes. Ainda te lembras da sala que ficava por trás dela sempre fechada à chave, que nos remetia para o imaginário na tentativa de descobrirmos o que encerrava no seu interior?

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  2. João, obrigada... Se benefícios houve pela invasão desta era tecnológica que fez desmoronar a nossa biblioteca, um deles foi certamente a possibilidade de eu te poder receber hoje no meu blog e de podermos juntos partilhar as palavras que nunca íamos dizer.
    Talvez seja a insistência nestes pequenos momentos de saudosismo, entre pessoas que se viram crescer e partir, o que poderá salvar ainda o Carregal do Sal da nossa memória.
    É esta a única forma efectiva de podermos fazer viver connosco todas as histórias reais ou fictícias que pessoas como a querida Amélia Pina nos deixaram ficar.
    E, como se tudo isto não bastasse, ainda vale mais por essa sala fechada à chave que já não vamos a tempo de abrir. Não me recordava dela mas vem rechear um pouco mais as minhas lembranças. Já viste, mesmo depois de tantos anos, ninguém soube compreender que aquele edifício tinha tanto por desvendar...
    Termino apenas para dizer que é um orgulho ver-te por aqui.

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  3. ... e assim surge uma inimaginável oportunidade de regressar à Biblioteca Municipal de Carregal do Sal... que saudades tinha! :) OBRIGADA Ana Rute
    bjos*
    Sónia

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  4. ...de nada, é um prazer viajar contigo!
    VOLTA SEMPRE Prima Sónia. :) Beijos,
    Ana Rute

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