domingo, 22 de novembro de 2009

Memória

A memória é essa trouxa enxovalhada mais ou menos bem-vinda que faz de nós saltimbancos entre tempos, alpinistas de íngremes montanhas de sonhos, marinheiros de vagas de passados com mais ou menos sal.
A memória é essa estola felpuda que nos afaga em dias ventosos e também o peso que carregamos a subir escadarias de obstáculos.
Sempre lá em todos os tempos, mesmo naqueles em que o tempo escasseia.
E se por vezes lutamos pela manutenção dos objectos e outros elementos físicos, como um escudo de consagração vigente a impedir que a lembrança se desvaneça, o contrário também acontece. A destruição das provas e testemunhos de má memória na tentativa de suavizar e adormecer as recordações que teimosamente lhe sobrevivem.
Tanto nas guerras do mundo como nas batalhas pessoais há ruínas desavindas e líderes polémicos, há leis de protecção e heróis por homenagear.
Há património para alienar... há património por classificar...
Basta apenas que possa prevalecer a narrativa mais verosímil e aberta, entendendo que todos os vestígios e personagens evocam sensibilidades... e são válidos na história.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Danos Urbanos

Navega-se em ruas como mares secos onde ninguém cumprimenta, onde ninguém tem nome, onde ninguém importa. Os corredores de betão em homenagem a qualquer coisa que nos esmaga de pequenez. Passa-se pelo tempo agarrado ao ponteiro sem ver conversar as horas. Há velhos e cães e pedintes com estatuto decorativo incómodo que alguém votou à não importância. Há lixos e mágoas e gente perdida com estatuto de inutilidade social que alguém votou à não relevância. E trituram-se os dias com a pressa mórbida de quem atordoa uma verdade inconfidente. Os restos das noites leva-os a chuva, passa-se a ferro esse rosto enrugado ao nascer do dia. O céu é tão pesado que qualquer dor lhe parece leve. E leves seguem mil passos anónimos sem deixar marca. E no barulho intenso de todos os trânsitos, o silêncio das madrugadas. E no súbito interlúdio de todas as multidões coloridas, a solidão das manhãs. Nesse orvalho sombrio, tu. Sempre tu. Nunca esquecido. Oscilando entre o espaço ocupado, entre o tempo preenchido, entre o bafo da urbe, abafado. Sempre espaço para ti, para o teu tempo perdido.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Pretending

Nesses que fingem já não se crê mais.
Fingindo, assim, ser alheio a fingimentos e outras coisas que tais.
Das máscaras trémulas que insistem assumir,
Dos momentos de susto em que as deixam cair,
Sobra apenas o cenário, iluminado ou obscuro, em que decorreu a cena.
Antes guardassem a arte para o palco, para o ecrã da TV ou para a tela de cinema.
Perde-se a crença entre as vis intenções.
Vale mais ceder à pressa das primeiras impressões,
Do que embarcar na mentira de um riso forçado,
Do que manter o elo de um gesto embaraçado,
De um fundo baço e sem conteúdo,
Apelo do acaso fortuito de um ego miúdo,
Mergulhado no óleo obtuso de querer parecer.
Esta vida encardida não é o que poderia ser,
Mas tão somente uma ilusão vadia,
Impressa em folhas de resolução fugidia,
Rumo ao amanhã de entrada pequenina,
Onde a esfera que roda fica aquém do que se imagina.
Nessa dança tonta das múltiplas identidades,
Não se joga a favor de todas as possibilidades,
Apenas daquele imperioso e preciso momento,
Em que a verdade da sombra feliz ultrapassa a barreira do fingimento.