terça-feira, 25 de maio de 2010

Navegar, navegar...

Sempre gostei de fazer barquinhos de papel. Gosto, pronto. A história começa sempre no surdo silêncio do ócio, na cega solidão acompanhada, na rasgada ternura da infância. Vai-se olhando vagamente para um qualquer guardanapinho, folhita ou bilhete e enamorando-se da sua forma informal e disforme, quase a suplicar por uma nova viagem. Ao toque, o seu rosto usado é como que um doce em dia de festa ou um mergulho em dia de praia, irresistível. Um barquinho de papel podia perfeitamente ser feito a partir de um quadrado mas, na realidade, um meio de transporte tão imperfeito nunca seria perfeito se procedesse de um quadrado. Na verdade, os quadrados de pouco servem nesta vida, sobretudo se for para transformar e mudar, sobretudo se for para repensar, sobretudo se for para viajar. Nesse sentido, basta apenas um rectângulo ousado de quase todas as proporções. Vão-se alinhando as pontas enquanto se desarrumam os sentidos sem ponta por onde pegar. Vão-se unindo os cantos, deixando o resto de tudo arrumado num canto qualquer. As dobras devem ser lavradas veementemente com a insistência com que se vincam os mais venturosos trilhos e as arestas amassadas do papel calcadas pelo método da mais artística geometria. A meio do caminho pode sempre servir para pôr na cabeça o nosso projecto de barquinho, fica-se com o chapelinho de um qualquer soldado a vigiar. Mais volta menos volta, é fundamental o cuidado que se tem a dobrar e desse soldado revirado ficamos com uma flor que até se pode assoprar. Vai-se enamorando da obra e com gosto a flor desabrochar, que com jeito a desdobra vai o barquinho montar. Mais volta menos volta já qualquer solidão desatinada parte para um novo alinhar e vai decerto na volta aqui um marinheiro encontrar. Navegar num copo de água sem ondas ou até em ondas sem mar. Navegar num prato ou numa secretária, onde quer que vão desafogar. Ficará talvez depois largado o barquinho, inclinado, naufragado, encalhado, sei lá, e sozinho. Na fenda entre o ir e o voltar, amado fez novo caminho. Sobre a origem deste transporte, não sei, deve ter sido sonhado um dia com carinho, quando em ócio ao pé dum papel alguém como uma criança terá caído do ninho. Depois das voltas deve ser sempre para lá que me leva o barquinho. Tanto trabalho para ainda alguém revirar o sonho desafogado e o atirar para o cesto do lixo a granel... Pensa-se que é para lá, onde já não giram os moinhos, lá para onde os tolos enviam, sem saber, os barquinhos de papel.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

O amor depois dos 20

Há quem diga que para tal universalidade e infinitude não poderá constituir a idade qualquer óbice.
Suponho que nesse âmbito falemos sobretudo da essência da matéria que, em todo o caso, jamais mudará, pesem as tentativas constantes de a automatizar, industrializar ou mesmo plastificar. Ainda assim, a sua forma apresenta alguma volatilidade de ritmo e germinação, procedendo de estádios pessoais mais ou menos inflamáveis.
É com algum alívio mas, ao mesmo tempo, alguma apreensão que constato que já o amor depois dos 20 é muito menos impetuoso e estandardizado do que aquele que, na adolescência, parece ser movido por uma qualquer borbulha. Ainda assim, o resultado da sua combustão poderá (ou não), nesta realidade, ter mais impacto e sustentabilidade do que uma mera erupção cutânea. São penosos os caminhos da jovem experiência e da maturidade com que se paga o cair das vendas de uma candura primeira...
Que possa ter este amor maiores os seus alicerces e menos opacas as suas vendas, fundado numa robustez epidérmica de mais longas sensações e, de preferência, menos penosas cicatrizações. Que possa este amor ser mais um antes do que um depois. Que possam as formas, de todas as formas, deixar de importar. Que possa esta patetice naïf da passagem do tempo deixar de teimar em emoldurar o amor.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Ouvi dizer que o mundo acaba amanhã

25 anos.
Ouvi dizer que mais depressa do que imagino darei por mim a prantear... foi de fugida...
Como mais honroso tesouro guardo num cofre a inconsciência dos anos que um dia tarde farão inveja à própria mais do que a qualquer outra. Nada melhor do que a inconsciência pode gerar maior cobiça ainda que também ela se muna de insondáveis mantos por desvelar. Será tão infinita e insólita quanto as sucessivas subidas e descidas por assaltar.
Da tenra espinha vai germinando uma mais sólida coluna vertebral.
Na arruada parto pujada por duas bagagens em preâmbulo. A bolsa amassada do despojo passado. A bolha insuflada do bojo sonhado. Neste pacote engalanado do tempo presente é a bolsa que me compassa o caminho e é a bolha que me inclina para a frente. Seja sempre o peso da segunda superior à carga da primeira.
E são umas admiráveis bodas de prata comigo própria o que comemoro nesta segunda-feira. O moínho da convivência continuada é sempre um feito, concertando tantas estranhas inquilinas numa mesma morada.
25 anos.
Ouvi dizer que é melhor que não mais me adie a largada... não vá o relógio pregar partida...

terça-feira, 11 de maio de 2010

Camisolas Berrantes

Há quem não goste de rebanhos. Há quem abomine essas manadas de mímica onde tantos se omitem e se anulam sob o pretexto do conforto sensaborão que pode oferecer um qualquer mercado social de economia de escala. É um facto que o seu esquema reprodutor se multiplica como uma qualquer urtiga difícil de suster. É um facto que na maioria dos núcleos de convívio entre adultos passará este jogo por uma qualquer reedição pueril que se situa entre a comicidade e a farsa.
Ainda assim, momentos há em que pertencer a uma imensa tribo inofensiva poderá, mesmo para uma tal céptica das dinâmicas grupais, ter o seu proveito. Quando a leveza da competitividade clubística se une a uma tal candura da emoção desportiva, todos os motivos são bons para celebrar. Haja tais momentos em que, na falta de dados basilares que nos aproximem, possam estas cores e hinos envolver na festa de uma única tonalidade ovelhas de vários matizes.
Esquecendo as pestes de qualquer índole mais fragosa e rastejante, que bem que sabe uma tal dança ao largo como uma papoila saltitante.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Alma Mater

Tenho para mim que as Mães são o melhor exemplo de que o contrato de propriedade dos encantos da vida não envolve qualquer promessa de facilidade. Pesem quaisquer dores físicas ou morais, danos de alma ou inquietudes de consciência, o caminho da maternidade desdobra-se infinitamente em abnegação e indulgência. Segue de mãos dadas no encontro de uma reflexão profunda sobre a gestão de um legado onde se explanam diariamente os predicados do saber ser e do dever ser. Segue de mãos dadas com uma criança espelhada em si como um universo de possibilidades e prossegue em parceria com um adulto que concretiza em si a universalidade possível. Parte de um longo e temeroso percurso onde deve reinar convicta a responsabilidade de um "faz o que eu quiser" para um trilho iluminado pela responsabilização de um "faz o que quiseres".
Dizem que, depois de ser Mãe, uma mulher fica com os pés maiores. Tem piada. Talvez seja para se apoiar com mais solidez contra todas as forças ventosas com que a fustiga o futuro. Talvez seja para que ligação à Terra se multiplique em perspicácia e pragmatismo, consistência e realismo. Talvez seja o corpo a responder a um apelo do caminho, a prevenir-se para dar passos a dobrar, para correr a dobrar, para amar a dobrar, para resistir a dobrar. Ou talvez seja só mais um ditado popular a sobrecarregar de pressão uma mulher para ser mais do que um errante e finito ser humano qualquer.
E dou por mim, ainda impregnada em fluido amniótico, sentada à mesa a ver um filme com a minha Mãe. As duas a chorar com o raio do filme sobre mães e filhas. Oh Mãe, chiça, este filme é mesmo de todo - digo eu, a soluçar. Ainda é disto que eu gosto de ver - responde a minha Mãe. Tens razão Mãe, a vida boa é a que nos toca, que nos emociona. Que nos liga e nos implica sempre mais. Tens razão Mãe, vamos sentar-nos a vida inteira em frente a uma qualquer televisão a ver um filme triste. Vamos chorar esse filme triste enroladas ao nosso inquebrável cordão umbilical. Vamos chorar esse filme triste a sentir-nos assim tão felizes.