terça-feira, 27 de julho de 2010

Déjà-vu

O que eu detesto nas pessoas passivas é essa capacidade de se deixar ir para lado nenhum, de se alhear de todos e de alguém como se na realidade fosse indiferente, a todo o momento, fazer o que deve ser feito ou fazer outra coisa qualquer. O que eu detesto nas pessoas irresponsáveis é essa capacidade de deixar cair seja quem for que se carrega nas mãos, contando com um indulto quase incestuoso desse mesmo alguém que se deixa esborrachar.
E detesto isto como quem é alérgico a uma coisa que dá comichão mesmo antes de se tocar, provocando reacções desmesuradas e imediatas na superfície cutânea, tratáveis apenas pelo afastamento definitivo da dita coisa que as espoleta. E detesto isto como a um vício que é traiçoeiro, redundante e persistente, resistente a todos os tratamentos, químicos, grupos de auto-ajuda, actos de contrição, confissões e pedidos de desculpa. E detesto isto como quem se debate com a impossibilidade que é almejar como remissória a própria natureza de alguém. 
Os episódios em que os referidos eventos acontecem são passíveis de se identificar com relativo rigor sempre que o alvo for repetente nas cenas e se tenha tornado por isso absolutamente alérgico. É sempre a mesma vertigem de estar perante um aglomerado de qualquer coisa inerte que, no seu peso atravancado, não avança nem deixa caminhar. É sempre o mesmo horror de assomar a visão de um adulto num corpo de criança, desprovido de referências, princípios ou aspirações, uma criança que brinca fora do tempo uma infância sem lugar para existir. É sempre a mesma sensação de que há por aí reboques que nada esperam senão um tractor que lhes conceda uma trajectória.
O quadro é austero e triste, porém permeável ao toque de alguma comicidade. Bem propício a um fatal e marcante e irremediável déjà-vu.

2 comentários:

  1. É impossível ficar indiferente à tua fabulosa escrita. Nem sequer encontro palavras para descrever o que senti quando li... Só te quero dizer adoro te ter como amiga... Um beijo e aquele abraço especial.
    Cristina

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  2. Fico sempre satisfeita que a minha escrita, na sua insignificância, possa fazer a diferença para alguém. São só as minhas tentativas para encontrar palavras para os meus desabafos. E adoro que tenhas o cuidado e a gentileza de as vir ler. Outro beijo e outro abraço especial para a minha amiga Cristina! :)
    Ana Rute

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