domingo, 10 de maio de 2009

Da minha ponta à tua submersão

Não foi à toa que Freud lhe quis chamar iceberg. A imagem do imenso e luzidio bloco de gelo flutuante a que na máxima inconsciência, chamamos consciência.
O monstro petrificado dos mares longínquos e desertos, o sádico da natureza que atraiçoa navios inafundáveis acabados de inaugurar. A interminável casa de horrores onde habitam impávidos os fantasmas de cada um.
Do ser humano que somos mostramos apenas a ponta, para quem a saiba ver. Do ser humano que nos está defronte vemos apenas a ponta também. O pequeno extremo ensolarado que pontualmente ousamos fazer derreter.
Mas o monstro jamais se dissolve.
Nas catacumbas sangram gelidamente as feridas, rosnam surdas as feras de uma história sem princípio nem fim. Escultura das correntes violentas do oceano sem cheiro de água doce.
Na métrica, matemática ou aritmética escondem-se os números da proporção individual entre a ponta e a submersão, entre a tona e a profundeza, o que se mostra e o que se esconde, o que se diz e o que se cala.
Do ser humano que sou nem a ponta conheço, como posso adivinhar a tua submersão?
...
Porque na tumultuosa vertigem da correnteza, entre as tempestades, por entre as ondas violentas e os braços de todos os Adamastores, no meio das aves que gritam e as bebedeiras de azul, pode haver um ou outro rasgo de luz.
Entre a penumbra um pequenino audacioso raio a iluminar o infinito de imperfeição desse envergonhado e irremediado monstro que julga não ter salvação.
Nesse rasgo, numa ínfima fracção de tempo, do ser humano que sou, tu vislumbras o que desconheço e eu adivinho o teu improvável. Nesse engano, nesse equívoco mútuo, vamos da minha ponta à tua submersão.
Terminado o eclipse, de novo o escuro sádico e frio, ao sabor da corrente escultora.
Não será muito mais do que isto a vida nubolosa que nos habita, senão este vago oceano onde derivam blocos de gelo profundo, um silencioso desfilar de ausências e feridas por sarar, onde o meticuloso conhecimento de senso comum é o fait divers das pontas solarengas que escondem um poço de perguntas sem resposta.
Uma superfície onde as tímidas pontas abafam os seus monstros.
Na serenidade sádica onde dispontam por vezes parcos raios de luz.

1 comentário:

  1. Feridas por sarar...blocos de gelo...

    ...

    Ainda bem q há quem saiba derreter o nosso iceberg...

    C(luar)

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