domingo, 31 de maio de 2009

Criaturas Superiores

"O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais depressa ainda, as afeições violentas. A maioria da gente, porque é estúpida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contraiu o hábito de se sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As criaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade dessa ilusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por ele a estima, ou a gratidão, que ele deixou.
Estas coisas fazem sofrer, mas o sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais do que partes da vida?"
Quando Fernando Pessoa, correndo o ano de 1920, escreveu a Ofelinha a confirmação da despedida, já saberia decerto a tormenta do desengano que é o fim do amor. Como conheceria também o sofrimento de sobreviver a esse desengano, efémero de facto, como tudo, como outras coisas mais.
Não há muito, aliás, não há nada a acrescentar às palavras de Pessoa que, também neste capítulo, teve o génio de atribuir a dose certa às palavras. Sem falsas intenções opôs a gente estúpida às criaturas superiores, que por vezes ninguém entende, que por vezes ninguém ousa entender, cuja sensibilidade ninguém respeita, cuja clarividência, sobretudo se misturada com a solidão, é um veneno, um veneno que ninguém imagina.
E, no entanto, por fim, um veneno deliberado, arbitrário, de quem não poderia, apesar de tudo, ser capaz de tomar um rumo diferente.
Fica também, em momentos de tristeza, um secreto desejo de que o desengano se desfaça, que regresse novamente a ilusão e a vida possa aliviar esse peso.
...
Não será esse o caminho...
...
Mas quando nos cruzamos com quem ignora esta verdade, quem no seu sono profundo desdenha da frágil-forte volátil e mínima posição em que estamos, nem se sabe o que desejar - que permaneçam nessa doce e invejável armação ou que, num dia chuvoso e triste, sem escudo nem elmo, venham juntar-se a nós.
A todas as Ofelinhas, mas sobretudo a todos os Fernandos desta vida.
"Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras afeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil."

2 comentários:

  1. Belo começo e melhor conclusão.

    C (luar)

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  2. será que alguma vez o Amor é inútil? ou somos nós que o tornamos ao fazermo-nos acreditar que o foi, no intuito de negar o que Ofelinhas e Fernandos, agora distantes, tiveram a capacidade de despertar em nós...

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