quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

alma de bandoneón

A sensação do viajante que regressa a casa. Os horários desgastados, as rotinas remexidas, os sonos trocados. A plenitude inusitada de ter a alma desmembrada, partida, repartida por mais do que uma história, por mais do que uma terra, plantada em mais do que um lugar. E a tortura do sentimento de ausência de todas elas e de cada uma delas, em simultâneo, miscigenada na agonia das saudades de si próprio, do tempo em que todos estes lugares eram desconhecidos e em que a vida era uma única propriedade entre cercas limitadas. O gesto de desfazer a mala no sentido melancólico de desconstruir a viagem, remexendo e arrumando os seus vestígios, distribuindo os seus resíduos, as suas provas. Lado a lado na mala, os presentes embrulhados por oferecer, os objetos deslocados que ainda cheiram a outra casa, que ainda respiram outro ar, e a roupa amarrotada e por lavar, indecisa entre guardar o pó das memórias e aceitar a fatalidade de voltar. Tudo isto misturado numa mesma e caótica mala, entalada à pressa nos dias em que não havia vida que sobrasse para discorrer sobre arrumações, em que não havia tempo para rotinas menores, em que não havia espaço para nada que não fosse desbravado e saboreado sem regras nem compartimentos nem engomagem. Tudo isto misturado com o tempo que agora escasseia, numa altura em que os relógios voltaram a funcionar e a exigir um plano, um cumprimento e uma nova espécie de adequação. Nada voltará ao lugar e nada estará completamente arrumado quando, no regresso, o viajante for outro e a casa for outra, numa vida desarrumada que tirou tudo do lugar. Colapso de energia e de cansaço, sem vagar para recorrer à cartilha das malas desfeitas. Terreno antigo onde agora tudo é novo, onde tudo o que era outrora se ganhou e se perdeu. Casa desconhecida, viajante desconhecido, mala perdida entre o desejo inquieto de voltar a partir e a utopia nostálgica de não ter nunca regressado.

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